ranzinza

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quinta-feira, 15 de março de 2012

Caixão em inglês é "Coffin"



O aluno da primeira carteira, sentado na minha frente, levantou num sobressalto e roubou o boné de outro, foi correspondido com um chute no peito e respondeu com um soco no nariz, com o boné roubado e ao pingar duas gotas de sangue do seu nariz, sua vítima desferiu uns três ou quatro socos determinados antes que eu o agarrasse e o mandasse à pedagoga.

As zeladoras limpavam, com um pano velho-mole-molhado o sangue do chão, quando bateu o sinal e eu fugi dessa sexta para a quinta série.

Dos dentes ferventes em murros verbais tentando controlar os ânimos em alta voltagem, dos trinta e poucos pré- adolescentes no início da terceira aula, nada os disciplinava, eles nunca usariam a língua inglesa em suas, provavelmente curtas, vidas. A correria por entre as carteiras era incessante, e eu me sentia um professor-palhaço-invisível querendo os ensinar. Ocorreram-me mais berros e palavrões para suas costas suadas recostarem nas devidas cadeiras.

O fato é que eles são marginais, desgraçados, os tamancos das meninas tem barro, todos conversam sem hesitação sobre maconha, e no mapa da cidade o bairro não tem ligação com o perímetro urbano, mas o silencio deles era uma utopia e uns bate-bocas estouravam sorrateiros, até o Jefferson e a Lidiane trocarem hálitos fedidos cheios de pudor:

- Sua piolhenta de cabelo embaraçado, vai tomar banho no rio sua encardida!
Como uma cadela de corrente curta demais para a sua raiva, a Lidiane devolveu:

- Piolhenta era tua irmã!

Num empurrão, se livrando da sua carteira escolar, Jefferson atravessou a sala determinado como um tiro, e suas mãos foram a coleira que a Lidiane não tinha, a sufocou, a grudou contra a parede e ela entendeu que não deveria falar da irmã dele, pois a raiva das mãos do menino na sua garganta não a deixavam chorar, ele arremessou no chão os olhos molhados dela, e n’outro sobressalto ela se levantou aos prantos com a mão já na alça da mochila, aos gritos foi embora, cortou o corredor, reta, sem rumo.

Do silencio minha autoridade se fez, perguntei, de cima para baixo, ao Jefferson:

- Aonde já se viu bater em uma menina? Você está louco?
Ele ofegava, os contornos daqueles olhos eram mais que raiva.

-A irmã dele morreu ontem.

Disse o Lucas, num dos meus ao redores de alunos. Como eles são cheios de graça, eu duvidei.

- É sério?

- Sim, professor!

As outras faces infantis e penosas consentiram, por via de dúvidas, interpelei o Jefferson:

- É verdade?

Recebi como um soco, um cuspe, um tapa, qualquer tipo de ferida que não cabe em um único ser:

- Vai perguntar pra ela lá no caixão!

Eu senti muito... Muito.

Me virei para o quadro e continuei passando o texto sobre Marine Parks, que havia começado na aula anterior.

O Lucas gostava, ou precisava, cortar o silêncio e era sempre contundente:

- Ela morreu de bicha professor.

- O quê?

- Sim, ela tinha quatro anos.

No intervalo, os ânimos dos professores estavam em alta voltagem, e o meu café preto estava redondo na xícara.

O pai do Jefferson é cego, seu irmão, o Daneil, que também tem um moicano, estuda na outra quinta serie e sempre que a pedagoga me fala que ele tem perfil de psicótico, eu lembro da baba seca ao redor da boca dele me contando da fome, do envolvimento com crack e de como deu voltas pra conseguir me dizer que o chão da sua casa era de terra batida.

- Olha a cara de desânimo do professor de inglês – Falou a de matemática

- Eu soube que a irmã do Jefferson e do Daneil morreu ontem – Foi o que tive como resposta

O silencio na sala dos professores obrigou a pedagoga á relatar:

- Sim – Arrumando a armação old-fashioned dos óculos – Ela tinha vermes e eles subiram pra cabeça, mataram a menina afogada, e quando ela morreu, isso quem me falou foi a mãe dos meninos, quando ela morreu os vermes começaram a sair pela orelha, pela boca e pelo nariz, quando chegaram do culto ela estava morta e o travesseiro cheio de vermes, eles não tinham como levar a criança no médico, só depois de morta. Tiraram um quilo de vermes da barriga dela.

Os lanches comidos por todos os professores, sem dúvida se mexeram, e entre todos os comentários que não ressuscitaram nenhuma criatura, bateu o sinal.

A professora de artes, certa vez me falou para eu não me envolver com a realidade deles, e tentando driblar o abismo da frente do meu nariz eu falei pra mim mesmo:

- Caixão em inglês é coffin.