Conversa em lugar alto:
- Eu sei que há coisas ruins de
serem ditas, que quando a gente transforma algumas coisas em palavras parece
que algo se perdeu. que é impossível de traduzir algumas coisas que são intimas
e parecem incapazes de existirem fora da gente, mas olhando essas luzes
alaranjadas todas, enfileiradas de postes, ao longo das ruas, tenho a impressão
que a cidade é maior que o homem.
- Como assim?
- sei que parece um pensamento
juvenil, eu pensava isso quando tinha uns dezessete ou dezoito anos, que um dia
todos vão morrer e as cidades vão continuar. mas o que eu penso hoje é que
parece que esses buracos dos tijolos estão sempre espiando a rotatividade das
gerações que andam por aí, com um ar de superioridade, como se soubessem que
durarão mais. Entende?
- acho que sim... você guardou o
isqueiro? ... a cidade é a gente por fora...
- pois é. a cidade está sempre se
transformando. existe uma lei que diz que alguns metros, não sei quantos, para
dentro do seu lote, a partir da rua, não pode ser construído, pois um dia as
ruas vão precisar ser aumentadas, porque sempre vem mais gente para as cidades.
as cidades se transformam com o processo migratório, talvez assim sejam também
as pessoas.
- mas todo mundo nasce dentro de alguma cidade. A população não aumenta apenas porque veio gente de fora, mas as pessoas brotam de dentro também. vêm do útero. não apenas do nordeste ou do rio grande. como as flores dos canteiros ... as cidades não morrem. já pensou se todo mundo literalmente ressuscitasse como acreditam que aconteceu com Jesus?
- é curioso pensar que um ser
humano que hoje existe, e há uma semana não existia, têm os mesmos direitos que
os outros seres humanos que estão aqui há tanto tempo.
-é a vida. orgânica. são as leis. é
assim mesmo.
- sei que é assim. mas é curioso
pensar na fragilidade do ser humano, e do que nos suporta como seres humanos.
as leis ... Há uma passagem de São
Bernardo que diz que um problema grave que temos é que as leis não são
feitas por especialistas, advogados, juízes, promotores, etc., mas por
políticos.
- não quero falar disso.
...
- o que vocês comiam na cadeia?
- o que se come fora da cadeia ué.
arroz, feijão, carne, purê.
- então tava tranqüilo...
- você passa por vários períodos na
cadeia. no começo é tudo remorso, arrependimento e memória. logo você começa a
pensar que há tantos anos você não come um cachorro quente, uma batatinha
frita, não escuta o som do gelo batendo nas laterais do copo e o barulinho do gás
ou o formato da espuma. dá uma certa tristeza de pensar que você teve de ir
preso para dar valor pra essas coisas que sempre estiveram tão perto de você e
agora existe tanta batatinha para ser frita no mundo, mas tiraram esse direito
seu. nesse momento os sonhos do teu estomago num mundo cheio de delícias fazem
você querer sair logo da cadeia, e ir trabalhar para reduzir pena. mas logo o
tempo deixa de passar e você se torna mais espiritualizado. você já não lembra
de tanta coisa e deseja menos ainda. só pensa na tua situação de existir, sem
antes nem depois ou qualquer coisa. foi nessa época que comecei a pegar o gosto
pela leitura, que eu tava te falando. foi nessa época que começou aquele grupo
de leitura na cadeia. eu lia Tabacaria toda
santa noite antes de dormir. era mais importante que o cigarro, e assim foi por
mais de um ano.
No terraço do prédio onde estavam, era possível nessa hora da noite escutar os sons agudos que os morcegos emitem para reconhecer o ambiente que estão sobrevoando, e por sorte farejar algum rato ou inseto.
- o que mais você leu na cadeia?
- lá eu aprendi a ler. aprendi o
que é ler. não só eu. todo o pessoal do nosso pavilhão que escolheu leitura.
começamos a trabalhar mais depois do grupo de leitura, o pavilhão parou de ter
os contratempos, era como o delegado chamava as brigas. até o pessoal da
cozinha, a gente sabia que estava mais sério. a comida começou a ficar boa. o pessoal
cumpria as metas de trabalho em menos tempo e começou a fazer fila no chuveiro.
eu não sei te dizer bem certo, mas todo mundo sentia um espírito de
coletividade e esperança depois do grupo de leitura.
- outro dia eu ouvi falar que tem
um escritor, acho que é inglês, que cada capítulo do livro dele equivale a uma
cor ... a que cor você associa a prisão ... ou o teu tempo preso ...
- cinza. sem dúvida.