Quando
novembro vai alto e você vendeu suas férias é duro sair para trabalhar antes
das sete da manhã.
Manobrando
o carro no pé do prédio, caiu um catarro enorme no para-brisas, uma gosma de
alguém pouco a frente da sua cara. O dia saía da toca, ele saltou para fora do
carro e o vizinho do andar de cima o fitava da janela.
Desce
aqui limpar isso seu preto nojento.
Eu
vou descer é pra te arrebentar filho da puta.
Quando
o homem desapareceu da janela ele pegou a espingarda que descansava no porta malas
e ficou do lado de fora da porta de entrada do bloco, de onde o negro surgiria
após descer as escadarias. Agitado e despreparado como um porco, o negro ainda
passava pela porta quando a coronhada atingiu sua fonte. Tombou estatelado no
chão, sem camiseta e de shorts no meio da bunda, feito um monte marrom
gelatinoso. O boné foi embaixo de outro carro que estava por ali.
O
chão era de concreto e residiam ali pequenos cascalhos, quando com sua bota o
homem pressionava o pescoço do preto desnorteado que quando conseguiu encontrar
um norte, olhou vesgo para o buraco do cano da espingarda pouco á frente da sua
fuça.
Tu
vai pegar essa vagabunda dessa tua mulher e te arrancar desse prédio nos
próximos dias por conta, senão o IML vem te buscar, pedaço de bosta. Foi o que
ele disse encostando o olho seco da arma na testa do miserável agora assustado.
Ele
tirou o pé de cima do preto que se levantou acuado e subiu pelas escadas de
onde tinha recém descido, tentando impedir o sangue de correr pela orelha.
Quando
o homem deu partida no carro e acionou o limpador de para-brisas, melecando
tudo com o catarro, com a espingarda já no porta malas de novo, o sol ainda
nascia por cima dos muros, cercas, telhados, chaminés e para-raios.
O
dia sempre vai acontecer. Você não tem escolha. A vida é um nada que vai a
lugar nenhum e no meio dessa palhaçada toda a maior fração humana é bestial,
não reconhece a própria existência, não reconhece os próprios espaços e
desrespeita o dos outros, para essas pessoas o preço é uma dignidade mal
resolvida ou o sangue.
Os
dois dias seguintes foram normais, quando no fim do terceiro, ao chegar em casa,
se deparou com uma intimação para comparecer à delegacia ás nove horas da manhã
da próxima segunda-feira. A espingarda já havia sido deixada numa caixa na casa
da velha que benzia seu filho quando recém nascido – o menino tivera uma doença que
depois se revelou ser coqueluche, quando moraram nessa cidade pela primeira
vez, há quatro anos.
A
delegacia era um entulho. Papeis de todo tipo em cima de mesas velhas com nomes
cravados tortos e a toa, e o que parecia ser sempre uma organização diferente,
cômodo por cômodo e as vezes até no mesmo cômodo, de fato revelava que não
havia organização nenhuma. Gente hipnotizada na frente de computadores,
telefones tocando e aqueles papeis todos sibilando com o vento. Janelas de
ferro. Ele havia sido acusado de agressão corporal por parte do negro, cujo
nome era Elias. A moça fez algumas perguntas desinteressada, e um rapaz de
óculos e topete escrevia rápido em um computador amarelado tudo o que ele
dizia.
Não conheço esse rapaz e isso tudo deve ser um
grande engano. Faz poucas semanas que fui transferido pra cá, morei aqui alguns
anos atrás e estou de volta agora, sou novo no condomínio, não conheço ele.
Tudo
aconteceu formalmente e de uma maneira bastante desdenhosa, ninguém levou a
queixa muito a sério. A mulher logo ofereceu outros papeis para ele assinar –
tudo passa por papeis nessa vida – fechou arquivos, empurrou umas gavetas,
puxou outras e lhe entregou um envelope em seu nome. O negro só quis agir em
tom de ameaça, pelo que se entendeu, não comentou a respeito da arma e não
haviam testemunhas. O envelope tratava da audiência que teriam dentro de
quarenta e cinco dias.
O negro não dava sinais de que se mudaria,
continuava fodendo escandalosamente e sem pena a sua mulher antes de ficarem
completamente em silêncio, todos os dias, sempre cerca de meia noite, e seu pinscher
continuava preso na sacada o fim de semana todo, latindo rouco, tremendo de
frio e dando sinais de que dormira por exaustão.
Alguns dias depois, o homem recortou cerca
de sessenta centímetros do canto de um papelão, e às três da manhã colocou a tira
do papelão carregada com um filete generoso de pólvora exatamente embaixo da
porta do apartamento do negro, o pinscher não fez todo o alarde irritante que
pinschers fazem. Ele acendeu e a pólvora fez um estouro surdo e suave seguido
por um chiado de naja, as chamas criaram tentáculos vermelhos alaranjados cada
vez maiores e começaram a escalar a porta com mais volume. Ele desceu para o
seu apartamento.
A balbúrdia foi generalizada no andar de
cima e envolveu todos os vizinhos. Como é bom atacar gente nojenta.
Três dias depois, o negro suado, sua mulher
rija e dois chapas ébrios, todos de shorts no meio da bunda formando um time
bizarro, ficaram a tarde toda de sábado subindo e descendo as escadas com
móveis e foram embora, levando com eles uma carga enorme de angústia, incomodo
e nojo, permitindo pairar enfim um silêncio substancial, o assovio calmo de uma
majestade ao fim do dia.
No dia da audiência o homem e seu advogado
esperaram em qualquer lugar do fórum por algum tempo além do horário marcado,
até serem avisados que o acusador não apareceu. Provavelmente estivesse fazendo
inalação. O advogado ficou encarregado do arquivamento do processo e dias mais
tarde foi avisado que a queixa fora retirada.
Cachorro
que late não morde.
Três
ou quatro meses depois, três meses depois, o negro atravessou a rua debaixo de
uma sombrinha em frente ao carro do homem parado no semáforo, de cabeça meio
baixa como se gotículas da água gélida estivessem caindo na sua nuca. Deu uma
corridinha e um pulinho da rua à calçada e foi o máximo ao canto dessa calçada, caminhou meio encolhido para se proteger das águas que caiam do céu. Parecia um
cachorro recém chutado indo para um canto qualquer de rabo no meio das pernas e
com um olhar de vítima, mas é de fato o câncer do mundo. Teríamos um ambiente
mais Justo se seres humanos não tivessem que “domesticar” outros animais
selvagens para levantar sua estima, para sua estimação. Há quem diga que alguns
donos acabam parecidos com seus animais. Talvez seja uma das poucas verdades do
mundo. Pobre tem pinscher e playboy tem poodle.
Ajoelhado
na missa de Santo Antônio ele abriu os olhos para fitar Jesus. É para sua crucificação
que nos ajoelhamos, sua ressurreição é secundária. É a catástrofe que nos
alimenta e nunca houve redenção, por isso também nunca haverá
liberdade. Continuou ajoelhado.