ranzinza

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terça-feira, 13 de agosto de 2013

Redenção





Quando novembro vai alto e você vendeu suas férias é duro sair para trabalhar antes das sete da manhã.

Manobrando o carro no pé do prédio, caiu um catarro enorme no para-brisas, uma gosma de alguém pouco a frente da sua cara. O dia saía da toca, ele saltou para fora do carro e o vizinho do andar de cima o fitava da janela.

Desce aqui limpar isso seu preto nojento. 

Eu vou descer é pra te arrebentar filho da puta.

Quando o homem desapareceu da janela ele pegou a espingarda que descansava no porta malas e ficou do lado de fora da porta de entrada do bloco, de onde o negro surgiria após descer as escadarias. Agitado e despreparado como um porco, o negro ainda passava pela porta quando a coronhada atingiu sua fonte. Tombou estatelado no chão, sem camiseta e de shorts no meio da bunda, feito um monte marrom gelatinoso. O boné foi embaixo de outro carro que estava por ali.

O chão era de concreto e residiam ali pequenos cascalhos, quando com sua bota o homem pressionava o pescoço do preto desnorteado que quando conseguiu encontrar um norte, olhou vesgo para o buraco do cano da espingarda pouco á frente da sua fuça.

Tu vai pegar essa vagabunda dessa tua mulher e te arrancar desse prédio nos próximos dias por conta, senão o IML vem te buscar, pedaço de bosta. Foi o que ele disse encostando o olho seco da arma na testa do miserável agora assustado.

Ele tirou o pé de cima do preto que se levantou acuado e subiu pelas escadas de onde tinha recém descido, tentando impedir o sangue de correr pela orelha.

Quando o homem deu partida no carro e acionou o limpador de para-brisas, melecando tudo com o catarro, com a espingarda já no porta malas de novo, o sol ainda nascia por cima dos muros, cercas, telhados, chaminés e para-raios.

O dia sempre vai acontecer. Você não tem escolha. A vida é um nada que vai a lugar nenhum e no meio dessa palhaçada toda a maior fração humana é bestial, não reconhece a própria existência, não reconhece os próprios espaços e desrespeita o dos outros, para essas pessoas o preço é uma dignidade mal resolvida ou o sangue.

Os dois dias seguintes foram normais, quando no fim do terceiro, ao chegar em casa, se deparou com uma intimação para comparecer à delegacia ás nove horas da manhã da próxima segunda-feira. A espingarda já havia sido deixada numa caixa na casa da velha que benzia seu filho quando recém nascido – o menino tivera uma doença que depois se revelou ser coqueluche, quando moraram nessa cidade pela primeira vez, há quatro anos.

A delegacia era um entulho. Papeis de todo tipo em cima de mesas velhas com nomes cravados tortos e a toa, e o que parecia ser sempre uma organização diferente, cômodo por cômodo e as vezes até no mesmo cômodo, de fato revelava que não havia organização nenhuma. Gente hipnotizada na frente de computadores, telefones tocando e aqueles papeis todos sibilando com o vento. Janelas de ferro. Ele havia sido acusado de agressão corporal por parte do negro, cujo nome era Elias. A moça fez algumas perguntas desinteressada, e um rapaz de óculos e topete escrevia rápido em um computador amarelado tudo o que ele dizia.

 Não conheço esse rapaz e isso tudo deve ser um grande engano. Faz poucas semanas que fui transferido pra cá, morei aqui alguns anos atrás e estou de volta agora, sou novo no condomínio, não conheço ele.

  Tudo aconteceu formalmente e de uma maneira bastante desdenhosa, ninguém levou a queixa muito a sério. A mulher logo ofereceu outros papeis para ele assinar – tudo passa por papeis nessa vida – fechou arquivos, empurrou umas gavetas, puxou outras e lhe entregou um envelope em seu nome. O negro só quis agir em tom de ameaça, pelo que se entendeu, não comentou a respeito da arma e não haviam testemunhas. O envelope tratava da audiência que teriam dentro de quarenta e cinco dias.
     
      O negro não dava sinais de que se mudaria, continuava fodendo escandalosamente e sem pena a sua mulher antes de ficarem completamente em silêncio, todos os dias, sempre cerca de meia noite, e seu pinscher continuava preso na sacada o fim de semana todo, latindo rouco, tremendo de frio e dando sinais de que dormira por exaustão.
     
      Alguns dias depois, o homem recortou cerca de sessenta centímetros do canto de um papelão, e às três da manhã colocou a tira do papelão carregada com um filete generoso de pólvora exatamente embaixo da porta do apartamento do negro, o pinscher não fez todo o alarde irritante que pinschers fazem. Ele acendeu e a pólvora fez um estouro surdo e suave seguido por um chiado de naja, as chamas criaram tentáculos vermelhos alaranjados cada vez maiores e começaram a escalar a porta com mais volume. Ele desceu para o seu apartamento.
     
     A balbúrdia foi generalizada no andar de cima e envolveu todos os vizinhos. Como é bom atacar gente nojenta.       
     
     Três dias depois, o negro suado, sua mulher rija e dois chapas ébrios, todos de shorts no meio da bunda formando um time bizarro, ficaram a tarde toda de sábado subindo e descendo as escadas com móveis e foram embora, levando com eles uma carga enorme de angústia, incomodo e nojo, permitindo pairar enfim um silêncio substancial, o assovio calmo de uma majestade ao fim do dia.
     
    No dia da audiência o homem e seu advogado esperaram em qualquer lugar do fórum por algum tempo além do horário marcado, até serem avisados que o acusador não apareceu. Provavelmente estivesse fazendo inalação. O advogado ficou encarregado do arquivamento do processo e dias mais tarde foi avisado que a queixa fora retirada.

Cachorro que late não morde.

Três ou quatro meses depois, três meses depois, o negro atravessou a rua debaixo de uma sombrinha em frente ao carro do homem parado no semáforo, de cabeça meio baixa como se gotículas da água gélida estivessem caindo na sua nuca. Deu uma corridinha e um pulinho da rua à calçada e foi o máximo ao canto dessa calçada, caminhou meio encolhido para se proteger das águas que caiam do céu. Parecia um cachorro recém chutado indo para um canto qualquer de rabo no meio das pernas e com um olhar de vítima, mas é de fato o câncer do mundo. Teríamos um ambiente mais Justo se seres humanos não tivessem que “domesticar” outros animais selvagens para levantar sua estima, para sua estimação. Há quem diga que alguns donos acabam parecidos com seus animais. Talvez seja uma das poucas verdades do mundo. Pobre tem pinscher e playboy tem poodle.

Ajoelhado na missa de Santo Antônio ele abriu os olhos para fitar Jesus. É para sua crucificação que nos ajoelhamos, sua ressurreição é secundária. É a catástrofe que nos alimenta e nunca houve redenção, por isso também nunca haverá liberdade. Continuou ajoelhado.