ranzinza

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quarta-feira, 13 de abril de 2016

A sala de revelação de fotos





Pretendo escrever alguns episódios autobiográficos. Diga-se então que sempre fui perdidamente sentimental e magnificamente tímido. Sempre fui uma bomba silenciosa e nunca me remediei. Perceba-se os relatos de quem foi uma criança observadora que depois de levar uma tapa na cara do irmão, que disse “você não tem boca pra nada”, começou a querer se expressar.

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Ampére é no Paraná. Oscila entre 21 e 17 mil habitantes há décadas. Aos pés da igreja matriz se estende a praça central, daí deságuam as ruas da cidade abaixo. Nas costas da igreja não deságua nada, lá está o banhado – nome real -, bairro fundo onde moram os pobres mais pobres da cidade.

De Curitiba fui morar em Ampére, estive lá dos 7 ou 8 anos até os 14. Algo entre 1996 e 2002. Na minha cabeça essa cidade é muito maior do que é de verdade, (a) porque era pequenino nos anos que morei lá, cresci bastante depois de ir embora, e (b) porque nutro uma raiva grande por essa cidade – não vou pontuar essa raiva em um texto apenas.

Hoje em dia sou adepto da yoga e da meditação, mesmo assim não pretendo me desfazer dessa raiva que cultivo de Ampére, porque é uma raiva verdadeira, honesta, de coração. Eu odeio aquela cidade com vigor, a tenho por inimiga. Talvez isso me faça alongar minha ideia de que todo homem deve ter inimigos à ideia de que todo homem que se preza deve ter ódio de algum lugar do seu passado. Embora minha avó plantasse morangos – em cima da foça da sua casa – eu não cresci em um pomar perfumado, cresci na sujeira. Ampére é suja.

São as pessoas que fazem a cidade, então quando digo que odeio a cidade estou dizendo que odeio o que a ela é moralmente. Odeio aquelas poucas famílias que se tratam orgulhosamente por seus sobrenomes italianados e planejaram a cidade e estabeleceram que ali há um núcleo familiar, que eles dominam. Eu sempre fui ali um forasteirozinho, um pobre, um alguém sem sobrenome, um piá filho de uma pobre e viúva irmã dos donos do restaurante, um menino orelhudo que dava sinais de rebeldia e tinha que apanhar – e ser trancafiado no seminário, história para outro momento. Eu nunca vou perdoar essas pessoas.

Sou feliz por não carregar o sobrenome Pluscinski na identidade, pois é o sobrenome da família amperense da minha mãe, família que entre outras ajudou a fazer de Ampére essa Salém que é. Que planejou a vida de vinte mil cidadãos ao redor de uma igreja feia.  

Hoje tenho ódio de muitos tipos de gente, e quase todas são frutos da minha experiência em Ampére – como aqueles polacos que bebem e ficam com a bochecha vermelha, fedorentos e machões.

Mas tenho um carinho muitíssimo grande por inúmeras pessoas que moram em Ampére até hoje. Amigos, incríveis, que me ensinaram a pensar e tudo o que sei hoje é resultado daquilo para o que fui acordado com essas pessoas; estarão pra sempre no meu coração, embora nosso contato hoje seja pequeno.

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A choupana, restaurante de um dos meus tios, onde minha mãe foi trabalhar assim que chegamos à cidade, era em uma das esquinas da igreja, em frente à praça. Esse mesmo tio tinha uma loja de pneus nessa época. A loja era sempre muito ociosa e eu e meus dois primos ficávamos por lá quase todo o tempo, nos escondendo dentro dos pneus novinhos com cheiro de pneus novinhos – até hoje o cheiro de pneu novo me transporta àquele tempo, troquei os pneus do meu carro há três semanas - e atendíamos o telefone que esporadicamente tocava. As lojas dos lados eram igualmente ociosas e nós frequentávamos em clima de camaradagem infantil esses espaços todos. Passavam poucos carros nas ruas.

Um negócio ali do lado era um estúdio de fotografia. Eu não lembro quem era o sujeito, eu não lembro como era a frente do estúdio, apenas lembro de estar em algum momento único da minha infância dentro de uma sala amplamente escura em que o sujeito molhava, o que hoje sei que são, filmes de fotos em um recipiente com algum liquido raso, analisava os filmes das fotos no ar em uma luz estranhamente vermelha e as pendurava com um prendedor de roupas em um varal de fotos.

Tudo era muito vulto. E eu não sabia o que estava acontecendo, mas estava ali em silêncio em um canto nesse instante estranho da vida.

Hoje eu explicaria como se desenvolveu o raio-x, a fotografia, como a fotografia deu vasão ao cinema e como o cinema transformou toda a ideologia da humanidade no século XX, seria capaz de fazer vínculos que justificam o comércio ocioso terceiro-mundista e até entender parte da psique daquele cara baseado em poucas palavras que ele me dissesse enquanto pegava delicadamente aquela foto e a pendurava naquele varal. Mas naquele momento eu tinha sete anos apenas e meu coração ainda não cabia no mundo.