Se não estou
enganado eu tinha vinte anos quando embarquei para Buenos Aires, na rodoviária
de Foz do Iguaçu, eu estava realmente muito cansado. Era 18hrs e eu tinha
chegado na cidade às 7hrs, para economizar R$30,00 eu não passei o dia em um
hotel e fiquei vagando. Dormi no shopping sem querer às 15hrs. O cheirinho de
café e a musiquinha do shopping atraíram os duendes do sono que trabalham em
mim, quando abri os olhos um segurança me encarava e o relógio tinha corrido.
No momento do
embarque dois alemães não estavam conseguindo se comunicar por não falarem
português, nem espanhol, e por algum motivo me procuraram para ajuda-los. Quem me
procurou foi uma mulher muito simpática, que logo soube ser mãe da Paola, cujo
pai é argentino, e os dois, Paola e Alberto estavam embarcando para Buenos
Aires.
Alberto me ajudou
muito porque embarquei apenas com a passagem de ida, sem qualquer reserva de
hostel, passagem de volta, planos, nada! Mas nesse momento confuso do embarque,
em que dois alemães sujos entupidos de bagagens e uma família meio argentina
meio brasileira se aglomeravam ao redor de mim, conversei com uma velinha, que
se não me falha a memória usava uma bengala.
Infelizmente não me
recordo seu nome agora, mas ela me perguntou o que eu ia fazer em Buenos Aires,
e como eu não tinha resposta pra essa pergunta falei que ia estudar, o que não
é mentira, uma viagem é um aprendizado acima de tudo. Ela ficou muito feliz! Me
falou que era isso mesmo que os jovens deveriam fazer, me motivou, falou que na
década de 1950 fez a mesma viagem que eu estava fazendo naquele momento, quando
ela ainda estudava jornalismo e que ainda nem existia jornalismo no Brasil. Me falou
para andar a pé pela cidade “Não pegue taxis! Caminhe pelas ruas, vá nos cafés!
Buenos Aires se parece muito com Paris.”
“Buenos Aires se
parece muito com Paris”. Já tinha ouvido isso algumas vezes antes, sempre achei
um absurdo. Logo do desembarque em Buenos Aires, no taxi em direção ao centro,
eu pensei “caralho, Buenos Aires se parece muito com Paris!”. Nunca estive em
Paris, mas sei que Buenos Aires se parece muito com Paris (o centro, claro).
Então eu chego onde
eu quero chegar nessa história: eu nunca morri definitivamente, mas sei que o
caminho dos recém mortos em direção ao purgatório é exatamente como uma noite
em que eu estava indo a pé em uma novena com minha avó.
Estávamos em Ampére
e eu deveria ter uns onze anos, a rua era de calçamento mal feito, os postes
que estavam acesos tinham luzes fraquíssimas, as casas que passávamos tinham
cortinas fechadas e luzes amarelas por dentro. Era um bairro de periferia de
uma cidade muito pequena de um estado secundário do nosso grande país de terceiro
mundo.
Minha avó sempre foi
carrancuda e nunca gostou muito de mim. Era como se ela me puxasse naquela
(provável) terça-feira a noite de (provavelmente) outubro. No caminho tinha
estrelas, corujas, ventos suave nas árvores, penumbra, e um medo profundo que
nunca se manifestou mas sempre existiu. Era como se uma grande verdade tivesse
sido revelada e ela era má e nada se podia fazer a respeito a não ser se calar,
se ajoelhar e se submeter. Logo as velhas se encontraram em uma capela
lazarenta de triste. Todas caminhando devagarzinho, rezando juntas baixinho,
umas falavam a língua dos anjos. Meu radar pré adolescente nunca decodificou o
segredo do lado oposto das janelas redondas e altas. Os santos imóveis de olhar
perdido por décadas nos altares, os desenhos com cores pálidas nas paredes que
cheiravam fumaça doce de sininho de padre. Bancos de madeira santa demais para
vermes. Quanta gente já foi velada ali?
Se na morte existe
uma transcendência intensa dentro da nossa mente que seja uma apoteose do que
foi a nossa vida, certamente o meu caminho para o purgatório será uma resgate da
carranca da minha avó me carregando nessa noite, nessa manutenção da sua morte
que é a sua vida.