ranzinza

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quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Looping

Há um problema em a terra ser redonda, ela não tem um centro. Estou falando da sua superfície, porque vou falar de pessoas. Aliás, falarei de um bar.

Dizem que o tempo também é circular, talvez eu tenha nascido no momento do looping do tempo então em que jovens tem que frequentar coisas como fundos de navios, bunkers, tavernas, bares, pubs, e beber coisas baratas de baixa qualidade e sentir no meio do estômago o problema de existir, como se fosse um tipo de solitária comprida e ansiosa que se desenvolveu na nossa gênese ao longo dos anos. Ainda não existe uma tecnologia que no dia seguinte não deixe o sabor do álcool voltar azedo à boca, e a memória não amanhecer embaralhada ou as paredes ao redor da cama darem a sensação de cárcer.

Os dias seguem um ao outro, as semanas, os meses, e sempre, como o ponteiro do relógio que sempre se encontra, muitos jovens se aglomeram na frente do bar. Em geral os mesmos jovens, em geral os mesmos problemas, em geral as mesmas roupas de acordo com a estação, geralmente o mesmo estouro das bolas de sinuca, geralmente os mesmos olhares de canto, geralmente as mesmas frustrações ou orgasmos, ou devaneios.

Estou falando de um bar de uma cidade no fim do mundo, aliás, o fim do mundo teria algo de emocionante, estou falando de um bar em um local completamente deslocado, uma cidade pequena, sem notoriedade, que na sua fisiologia encuca a rotina e a alegria vil. Pior, esse bar fica num porão, depois de uma escada que foge em curva repentinamente da calçada. Esses lugares são o centro do mundo para as pessoas dessa cidade, e eu não posso dizer que estão errados, porque a superfície da terra é redonda, mas posso dizer que aqui não é um lugar glorioso, nem brilhante, nem excitante, tampouco especial. Pato Branco é o nome dessa desgraça. Não acontece nada aqui que não seja relacionado com motores ou coberto por propagandas de supermercados ou frigoríficos.

A desgraça desse lugar não é brutal, não é charmosa, rara nem rica, é uma desgraça pequena, como uma caligrafia de quem não gosta de escrever, numa história óbvia que não terminou. E continua não terminando. Essa cidade é um intervalo, e esse bar é só um bar, e esses jovens não querem mudar o mundo, matar o Temer, conhecer o buda. A cidade quer crescer, o bar quer lucrar, os jovens querem diplomas, empregos e sexo.

Sim, eu estou de saída. no momento que eu voltar a esse texto, daqui uns anos eu vou ser outra pessoa, vou repensar ele, criticá-lo (sou muito duro comigo mesmo), mas agora, aqui, em outubro, começo de verão, recém mestrado, estou sentindo isso. Foda-se você aí no futuro Diego, é o que estou lhe dizendo aqui de 2017, frustrado, em crise, com o remo quebrado, estalando os dedos, sem um pingo de tristeza e sem pingos de tesão, desinteressado e observando. Colocando minhas iniciais com um canivete.

Se eu morrer amanhã, morri. Com a sensação de quem finalizou o ciclo, e quando foi momento de celebrar se questionou. Sem respostas claras, e com a noção de que qualquer resposta seria insuficiente, recomeçou.

[estala-se um dedo]

[sorri-se]

[olha-se para a frente, o horizonte reto]

Já fechei esse bar e já discuti com o dono e um funcionário. Já mudei o mundo ali dentro e vim pra casa bem apessoado, nunca com cheiro de tabaco. Eu não fumo.
Mas se a terra fosse plana, ou um bloco, quadricular, etc., ela não combinaria comigo nesse momento, essa sensação de planície, de equilíbrio vasto, de grande segurança, não poderiam condizer com isso que eu sinto. Portanto, talvez, a minha problemática não seja a cidade, ou o bar, mas essa constante sensação de desequilíbrio que a redondeza da terra me provoca, esse looping do planeta e do tempo que me deixam tonto, me dão ânsia de vômito e perturbam minha percepção.


Sou o único sóbrio que é ridículo, tropeça nos buracos das palavras e das relações. Obviamente não, esse texto é uma grande brincadeira, sou mais seguro do que isso. Todos são ridículos sóbrios, a diferença de mim pra eles é que eles continuam ridículos bêbados, eu me torno... menos grosseiro. 

segunda-feira, 24 de abril de 2017

LUZ E DEPRESSÃO

Leitor, eu escrevo partindo do pressuposto que você já levou um choque elétrico.

Agora imagine todos os cabos de um poste, imagine-os conectados ao teu estômago, peito, costas e cabeça. Se você já levou um choque vai conseguir imaginar a força que esses cabos terão sobre você quando ligados.

Na realidade esses cabos não estão em você, mas as forças que você imaginou estão, por cabos invisíveis como se fossem Bluetooth, Wi-Fi. Essas forças condicionam você a atravessar a rua no mesmo lugar todos os dias, elas condicionam você a fazer o café na mesma hora e sempre começar a comer a coxinha pela pontinha ou pela parte maior, temperar a salada ou não, comer uma banana antes de ir jogar basquete, deixar o volume do som do carro no 12, etc. Pior: acreditar na polícia, na democracia, acreditar na ciência e admitir deus como uma invenção. Pior ainda: amar a tua mãe e o nenezinho que saiu da tua namorada, desconfiar do preto, do pobre, da mulher, do muçulmano, odiar o diferente e gritar gol. Ainda pior: não pensar sobre a tua própria morte.

Mas em algum lugar existe um homem sem a influência dessas energias, eu não o conheço mas sei que ele existe de acordo com a minha intuição que me faz escrever agora, e ele está cortando o próprio braço com uma gilete agora em algum lugar do espaço fora desse quarto.

Sabe aqueles outdoors eletrônicos enormes de propagandas que acendem à noite e iluminam a cidade cheios de cores que explodem dos anúncios e refletem nos carros, muros e vidraças? São o Bluetooth que grudam você no mundo como desejam os monstros da ordem e do progresso. Luz e depressão. Eletricidade e anemia.

Tem alguma coisa no teu celular aí do lado, alguma notificação, mas a pessoa está em algum outro lugar desse labirinto de luzes de Led e eletricidade mental simulando uma presença dentro do teu smartphone, por isso luz e depressão, eletricidade e anemia.

Outro dia fui tomar um café. Na mesa da frente uma menina sozinha deslizava o dedo na tela do celular enquanto levava a comida até a boca sem ver o que estava comendo, o café saía da máquina, a conta foi paga com cartão, e eu fiquei cuidando o semáforo piscando do lado de fora do vidro, como se fosse uma menina bonita meditando.


Em Meridiano de Sangue, considerado o livro mais violento do século XX, o Juíz Holden, um dos líderes de um bando de assassinos de índios, ao fim do livro, fala para o Kid que sabe que o tecido do coração dele apresenta algum tipo de defeito e por isso ele nunca foi um subordinado naquele contexto tenebroso de violência, ele demonstra algumas piedades sutis ao longo da obra. Eu me pergunto se o excesso de conforto e piedade que as máquinas trazem ao cotidiano da gente não deixa algum tipo de defeito no tecido do nosso coração... na verdade, nem é mais uma pergunta que me faço, já é uma resposta que encontrei. 

quinta-feira, 30 de março de 2017

HOMEM NO DESERTO

O mundo acabou e ele caminha pelo deserto desviando de esqueletos. As vezes não há como evitar a reflexão diante do abandono que aquelas caveiras sorridentes inculcam na memória, o tempo é uma camisa de força que desmancha tudo a cada passo e o que fica para trás desaparece, o peito é pequeno demais para caber no universo.

Sob o chilro quase mudo de cobras de areia que se formam com o vento a poeira desenha formas nas pedras e por mais que exista um horizonte quanto mais você caminha ele nunca se aproxima, você está sempre no centro do deserto. Não há maturidade que console um coração que se dilacera por tais condições, falta argumentos na solidão de tudo o que poderia ter sido mas falhou de maneira tão frágil.

Ele caminha porque existe um resto de eletricidade débil que sobrevive no seu cérebro mesmo sabendo que a morte é a verdade absoluta, a cova é a verdade do universo e qualquer ideia de sentido diante da vida é só brincadeira fúnebre.

Você talvez more em um cidade bem populosa, mas também não há nada lá onde você está indo espacial e temporalmente: não há nada na sua velhice e não há nada na casa que você sonha em comprar. O homem no deserto tem consciência disso porque ele está mais perto da verdade que você, que vive distraído pela tecnologia e pelas relações teatrais que admite, a tua forma de olhar pra frente é perversa.

Você é o homem no deserto, é só abrir os olhos.

Você é violento porque vive a alucinação de ter que tomar banho quente todos os dias mas de olhos abertos você seria filosófico e sujo, descobrindo que faz parte das filas de eternos bebês flutuando para lugar nenhum à mercê de explosões e dores, e que o destino é sarcástico por isso as caveiras sorriem. Um homem está cortando a grama do outro lado da rua agora, não nos resta nada de verdadeiro que não esteja de mãos dadas com a morte. Sem pensar em nada disso o homem no deserto as vezes cava fundo em busca de um pouco de água suja, e você vive no mundo do conhecimento sem saber que nada apodrece mais a carne do que a água, e lava o rosto nas águas sagradas da pia, nada como um dia após o outro dia. Mas é você o homem no deserto, confuso pelo concreto e pelo aço, que deveria perceber que os dias e as noites são uma coisa só, afinal, tudo muda de significado para nós que somos resultado de uma natureza sem princípios e as mesmas constelações que levavam homens longe pelo mar e pelo deserto hoje representam pouco.

As constelações são grandes mentiras por apontarem direções aos homens, como um prato de comida quente para um mendigo em um mundo de abandono.  Buracos não existem e buracos são o sentido final da vida.  

Se você lutar contra esse longo sono REM e conseguir permanecer em estado de vigília vai ver a verdade do que estou escrevendo.


quarta-feira, 29 de março de 2017

Eu vi a Eliane



Hoje é 14/02/17, sexta-feira. Eu vi a Eliane saindo do bar, aparentemente sozinha. Meio cabisbaixa e lenta, deslocada, velha demais para o lugar, olhando degrau por degrau da escada já do lado de fora do Bar do Juninho que dá pra rua.  

Há Uns dez anos eu não via a Eliane. Ela era a coordenadora pedagógica do CEFET – PB, o lugar onde fiz meu ensino médio, mas ela foi um monstro na minha vida, e isso não é a impressão de um aluno adolescente, eu a detesto muito mais hoje depois de ter estudado bastante sobre educação, tanto na graduação como na pós-graduação e no mestrado, todos na área de Letras.

No meu primeiro ano no CEFET, em 2003, dos 160 alunos eu era o único que não tinha computador, e a Eliane dava uma matéria que tínhamos que formatar um trabalho com capa, contracapa, sumário, espaçamentos, cabeçalhos, etc., coisas que ela me mandou fazer a mão com uma régua. Tive que fazer quatro ou cinco versões do mesmo trabalho, porque sempre faltava algum centímetro entre o fim da página e a palavra PATO BRANCO, ou entre as linhas, ou algum ajuste dentro da sanidade dela. A última versão do trabalho eu tive que levar pra ela nas férias, quando a universidade inteira – o CEFET era uma universidade - estava estranhamente vazia.  

A formação da Eliane é psicologia se eu não estiver enganado, e no ano seguinte fui convidado a fazer sessões semanais de orientação com ela, “porque você não tem pai, e tua mãe trabalha muito, talvez você precise de algum acompanhamento”. Ótimo. Fui apenas a uma “sessão”, na qual ouvi que se eu escondia o rosto com os cabelos compridos é porque eu tinha muito mais coisas pra esconder. Hoje eu consigo responder essa imbecil incompetente com um fragmento da entrevista do Contardo Calligaris, principal psicanalista brasileiro, no roda viva da TV Cultura, onde ele diz que toda criança tem o direito a ter segredos e isso a manterá saudável porque ninguém sobrevive sem segredos.

Eu reprovei.

Eu reprovei mais um ano.  

Eu fui convidado a deixar a escola, do outro lado de uma mesa sob o argumento de três professores envelhecidos e imbecis.

Pausa para Hamlet: esse príncipe da Dinamarca está refletindo, e percebe que a pior das desgraças aconteceu com o rei que agora substitui seu pai, envelheceu e continuou imbecil. Afinal, na velhice não se tem mais tempo de vida, apenas a sabedoria do que já se viveu, mas algumas pessoas envelhecem sem ter essa sabedoria, e já não têm mais tempo também, o que é a pior coisa que pode acontecer com alguém, desperdiçar a vida.

Os três professores argumentaram fortemente entre os meus cabelos sobre o porquê eu deveria sair do CEFET e terminar o ensino médio em alguma outra escola pública. Há treze anos eu ainda estou no CEFET, que até já mudou de nome, hoje é UTFPR.

O imbecil é aquele que quer regulamentar a vida do outro, aquele que quer impor as suas regras ao universo, o idiota. Eu fui perseguido por não ser o padrão de aluno que essa coordenação esperava que eu fosse: classe média alta, obediente e matemático. Eu gazeava muita aula pra ficar na biblioteca, lendo. Li muita coisa. Talvez tenha sido o aluno que mais leu naquela biblioteca – “O Caminho da Liberdade”, “os últimos Espiões Soviéticos”, Contos do Machado de Assis, “O Alienista”, etc.

 Ao fim do meu ensino médio eu tinha levado trinta e três ocorrências, das quais trinta foram por ir à escola sem o uniforme. Uma eu não lembro, mas uma foi por briga e a outra porque eu fui tomar agua no bebedouro e como não tinha copos disponíveis eu ergui o garrafão de água e resolvi tomar no bico, molhei toda a minha blusa do R.A.M.O.N.E.S  e o chão. Houve uma situação em que a tia Inês me tirou de uma aula pra eu assinar uma ocorrência, mas era para o Dyego Cantu, ela de tão acostumada a ir atrás de mim, foi automaticamente à minha sala.

A Tia inês fazia o favor de coletar o dinheiro de todos os alunos e ir comprar os vales transportes para eles, e quando roubaram da sala da todas as carteirinhas de estudante junto com o dinheiro eu fui o premiado a achar essas carteirinhas - sem o dinheiro - jogadas no chão do banheiro masculino. Imediatamente as levei à sala tia Inês, sem imaginar o que havia ocorrido. Ela começou a chorar na minha frente por baixo dos óculos, dizendo que teria que devolver o dinheiro para os alunos e que a casa dela tinha pegado fogo dois anos atrás. Que dó né?! Eu fiquei com dó, fiquei ali enquanto pude. Mas poucas semanas depois fui intimado – ilegalmente, porque eu tinha dezesseis anos – a ir na delegacia como principal suspeito do furto. Dei um depoimento meia boca, na delegacia as pessoas não eram tão mau caráter, e fui embora. Abriram sindicância interna no CEFET, onde dei depoimento das nove da manhã até depois do meio-dia.

Eu era perseguido. Se isso não lhe basta como provas, fica o fato de que em uma das milhões de caronas que eu peguei nesses cinco anos de ensino médio – pra voltar pra casa, por não ter grana para o ônibus – um professor desconhecido da faculdade, dirigindo, perguntou meu nome, e quando eu falei ele respondeu “Diego da Cruz?”. Sim. “Já ouvi falar de você”.

Era umas duas da manhã desse começo de 2017 quando a Eliane saiu devagarzinho e sozinha do bar. Com as bochechas caídas, o cabelo descolorido escorrido e o vestidão preto e longo. É verão Eliane, tempo de ficar com o mínimo de roupas possíveis o máximo de tempo possível, o que você tem para esconder embaixo desse vestido desse tamanho? E atrás dessas bochechas caídas?

Eu estava feliz nesse momento, entre amigos, com o cabelo amarrado, possivelmente um pouco bêbado e rindo de alguma piada vulgar do tipo se é possível mexer o pau sem piscar o cu (?). A Eliane passou perto de mim em um frame rápido, de cerca de dois segundos, eu pensei que talvez essa fosse a minha oportunidade de atropelar ela, alvejar ela, como sempre quis fazer, mas a ignorei, muito automaticamente, um sintoma de superação e felicidade. Afinal, em uma aula da pós-graduação, falando sobre o Saramago o professor Rodrigo certa vez comentou que a maior vingança é ser feliz.

HAMLET

Let me see. (he takes the skull) Oh, poor Yorick! I used to know him, Horatio—a very funny guy, and with an excellent imagination. He carried me on his back a thousand times, and now—how terrible—this is him. It makes my stomach turn. I don’t know how many times I kissed the lips that used to be right here. Where are your jokes now? Your pranks? Your songs? Your flashes of wit that used to set the whole table laughing? You don’t make anybody smile now. Are you sad about that? You need to go to my lady’s room and tell her that no matter how much makeup she slathers on, she’ll end up just like you some day. That’ll make her laugh. Horatio, tell me something. (Hamlet – Ato 5, cena 1.)