ranzinza

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domingo, 28 de outubro de 2012

De onde vieram os fantasmas? (alguns diálogos)







Quando Graham Bell foi considerado o inventor do telefone, seu pai esquizofrênico já ouvia vozes, e o acusou de plágio, pois o que o filho teria feito, foi apenas criar uma maquina que imitasse a sua doença e reproduzisse outras vozes. Por isso chamou-se o telefone, por um tempo, de “maquina esquizofrênica”.

Vozes são invisibilidades que se comunicam, e de acordo com o nosso folclore, cultura e inconsciente, invisibilidades que se comunicam são consideradas fantasmas. Também por isso temos aquele sentimento frívolo naquele vento seco que bate nas esquinas.

A nossa vontade Frank’Einstein’iana de combater o nosso medo, nossos limites, nos levou à criação de uma multiplicidade enorme de fantasmas – ou maquinas de vozes, ou meios de comunicação, como preferirem – e hoje temos não só o telefone, como o rádio e todas as outras ansiedades ‘comunicativas’, como as vindas do raio-x: foto, cinema e a TV, respectivamente; temos também os computadores que munem-se da internet. Atualmente há o surgimento de uma nova geração de filhotes híbridos destes nossos fantasmas, com uma gama tão grande de origens e versões, que não valem o espaço do nosso texto.

O fato é que há um ditado por aí que diz que um dia é o da caça e o outro do caçador, no nosso caso infeliz, um dia foi o do criador e o outro está sendo da cria. Nossos fantasmas se voltaram contra nós, e a multiplicidade de fantasmas que criamos, faz agora a voz de cada um de nós ecoar digitalmente dissonante e solitária, simultaneamente pelas sarjetas do mundo. É nossa agora a voz sem matéria, considerada fantasma.

São tantas as tecnologias que temos que acompanhar, tantas as vozes que nos perturbam, que sem tempo para pensar, nos tornamos vítimas das nossas crias. Nossas máquinas esquizofrênicas, maquinas de vozes, nossos fantasmas, transformaram nós em fantasmas. Somos nós agora os invisíveis que se comunicam. Mas esse retrocesso é ainda pior: de tão escravos, estamos apenas uivando.

domingo, 23 de setembro de 2012

Sobre a doença da nona


Dois erros não fazem um acerto, mas é incrível a frase da bíblia que diz que “deus escreve certo por linhas tortas”, afinal, a doença da minha avó me fez perceber a quão boa ela é.


Moramos longe, mais de cem quilômetros da casa dela, e certa tarde quando meu irmão chegou lá, foi recebido com um abraço caloroso atípico dessas velhas polonesas daqui. Um beijo no rosto, e considerações sobre como ele era bonito. Alguns agradecimentos foram despertados em meu irmão. Quando num sopro leviano, desses que arrepiam cada palmo de pele - uma tormenta no âmago do indivíduo - a nona perguntou, com o mesmo sorriso de antes, o mesmo olho redondo e claro que parece ter dado a volta ao mundo e retornado à infância, sem mudar a expressão: “mas quem é você?”

A bíblia fala muito sobre o inferno.

Alzheimer é a capital do inferno.

Talvez por isso as crianças choram quando nascem, por não possuírem memória. O inferno não é os outros, o inferno é não saber quem são os outros. O inferno é existir, debilitado, vivo, e não saber do antes, dos filhos, dos pais, de você. Não saber mais ver as horas no relógio.

Eu nunca gostei da minha avó, mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, e dois erros não fazem um acerto, então isso não faz de mim uma pessoa má a partir desse momento que percebo que ela é uma pessoa boa. Ela não é uma pessoa boa por ter Alzheimer, ela é uma pessoa boa por depois do Alzheimer ter apagado toda a sua vida, ter restado a ela um abraço e um beijo no rosto do meu irmão, seu neto, sem saber quem ele era, e sem lembrar que a cor dos olhos dele eram a cor dos olhos dela.

Depois de oitenta e nove anos de roça, isso me leva a pensar, de novo, que talvez sejamos mesmo bons selvagens. E me leva a querer, de novo, quebrar tudo ao meu redor quando ouço que “tempo é dinheiro”. Meu sangue sobe. O tempo é o tecido da vida.

Não se confecciona a vida, se confecciona na vida. A vida não é a roupa, a roupa faz parte da vida. Aliás, a maioria das coisas que constituem a vida, hoje, se vendem em caixinhas, mas não existe uma caixa grande o suficiente para se colocar a vida inteira, talvez por isso chamem o caixão de caixão.

A morte é Símbolo, como é o amor. O abraço e o beijo da nona.





PS: nos últimos anos criei o hábito de escrever, escrevi isso pensando na senhora, e achei conveniente lhe mandar. Aliás, certo dia estraguei suas flores com minha bola, queimei seu chuveiro, roubei seu dinheiro e lhe xinguei. Agora quero que me desculpe.





Ass: o único dos seus 17 netos sem seus olhos azuis.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Caixão em inglês é "Coffin"



O aluno da primeira carteira, sentado na minha frente, levantou num sobressalto e roubou o boné de outro, foi correspondido com um chute no peito e respondeu com um soco no nariz, com o boné roubado e ao pingar duas gotas de sangue do seu nariz, sua vítima desferiu uns três ou quatro socos determinados antes que eu o agarrasse e o mandasse à pedagoga.

As zeladoras limpavam, com um pano velho-mole-molhado o sangue do chão, quando bateu o sinal e eu fugi dessa sexta para a quinta série.

Dos dentes ferventes em murros verbais tentando controlar os ânimos em alta voltagem, dos trinta e poucos pré- adolescentes no início da terceira aula, nada os disciplinava, eles nunca usariam a língua inglesa em suas, provavelmente curtas, vidas. A correria por entre as carteiras era incessante, e eu me sentia um professor-palhaço-invisível querendo os ensinar. Ocorreram-me mais berros e palavrões para suas costas suadas recostarem nas devidas cadeiras.

O fato é que eles são marginais, desgraçados, os tamancos das meninas tem barro, todos conversam sem hesitação sobre maconha, e no mapa da cidade o bairro não tem ligação com o perímetro urbano, mas o silencio deles era uma utopia e uns bate-bocas estouravam sorrateiros, até o Jefferson e a Lidiane trocarem hálitos fedidos cheios de pudor:

- Sua piolhenta de cabelo embaraçado, vai tomar banho no rio sua encardida!
Como uma cadela de corrente curta demais para a sua raiva, a Lidiane devolveu:

- Piolhenta era tua irmã!

Num empurrão, se livrando da sua carteira escolar, Jefferson atravessou a sala determinado como um tiro, e suas mãos foram a coleira que a Lidiane não tinha, a sufocou, a grudou contra a parede e ela entendeu que não deveria falar da irmã dele, pois a raiva das mãos do menino na sua garganta não a deixavam chorar, ele arremessou no chão os olhos molhados dela, e n’outro sobressalto ela se levantou aos prantos com a mão já na alça da mochila, aos gritos foi embora, cortou o corredor, reta, sem rumo.

Do silencio minha autoridade se fez, perguntei, de cima para baixo, ao Jefferson:

- Aonde já se viu bater em uma menina? Você está louco?
Ele ofegava, os contornos daqueles olhos eram mais que raiva.

-A irmã dele morreu ontem.

Disse o Lucas, num dos meus ao redores de alunos. Como eles são cheios de graça, eu duvidei.

- É sério?

- Sim, professor!

As outras faces infantis e penosas consentiram, por via de dúvidas, interpelei o Jefferson:

- É verdade?

Recebi como um soco, um cuspe, um tapa, qualquer tipo de ferida que não cabe em um único ser:

- Vai perguntar pra ela lá no caixão!

Eu senti muito... Muito.

Me virei para o quadro e continuei passando o texto sobre Marine Parks, que havia começado na aula anterior.

O Lucas gostava, ou precisava, cortar o silêncio e era sempre contundente:

- Ela morreu de bicha professor.

- O quê?

- Sim, ela tinha quatro anos.

No intervalo, os ânimos dos professores estavam em alta voltagem, e o meu café preto estava redondo na xícara.

O pai do Jefferson é cego, seu irmão, o Daneil, que também tem um moicano, estuda na outra quinta serie e sempre que a pedagoga me fala que ele tem perfil de psicótico, eu lembro da baba seca ao redor da boca dele me contando da fome, do envolvimento com crack e de como deu voltas pra conseguir me dizer que o chão da sua casa era de terra batida.

- Olha a cara de desânimo do professor de inglês – Falou a de matemática

- Eu soube que a irmã do Jefferson e do Daneil morreu ontem – Foi o que tive como resposta

O silencio na sala dos professores obrigou a pedagoga á relatar:

- Sim – Arrumando a armação old-fashioned dos óculos – Ela tinha vermes e eles subiram pra cabeça, mataram a menina afogada, e quando ela morreu, isso quem me falou foi a mãe dos meninos, quando ela morreu os vermes começaram a sair pela orelha, pela boca e pelo nariz, quando chegaram do culto ela estava morta e o travesseiro cheio de vermes, eles não tinham como levar a criança no médico, só depois de morta. Tiraram um quilo de vermes da barriga dela.

Os lanches comidos por todos os professores, sem dúvida se mexeram, e entre todos os comentários que não ressuscitaram nenhuma criatura, bateu o sinal.

A professora de artes, certa vez me falou para eu não me envolver com a realidade deles, e tentando driblar o abismo da frente do meu nariz eu falei pra mim mesmo:

- Caixão em inglês é coffin.