ranzinza

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domingo, 22 de dezembro de 2013

Trecho do livro que ando escrevendo e uma das fotos que andei tirando

 7 horas


“Eu tenho 69 quilos, estou em queda livre há uns 20 segundos e estou a um palmo do chão. Com esses dados você consegue calcular o quanto vou demorar pra virar um monte de sangue e carne e ossos e dentes e pelos e membros e órgãos esparramados como nunca antes, ou uma alma indo para o céu, ou um espírito iniciando sua jornada de purgatório, ou um caixão simbólico, ou um pote de cinzas, ou tudo isso junto, ou nenhuma dessas coisas. O fato é que esses teus cálculos não dirão o quanto me resta de vida, porque eu não morro aqui, só morrerei quando a última pessoa de todas as pessoas do mundo que ouviram falar de mim tiver morrido, serei então o nada absoluto, a morte terá lambido o ultimo resquício de mim, mas até esse sujeito, que eu não imagino quem é e nem conseguirei imaginar, morrer, eu estarei vivendo, como memória. Que é o que somos no fim das contas - no meio das contas também, pois foi pra construir a memória da mulher que trabalhava no almoxarifado, na sala depois da sala da Lúcia, que eu sempre combinei minhas gravatas." 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Marcianos




Eu estava num bar quando divulgaram a imagem de marte tirada pelo robô que os humanos mandaram pra lá. Todos fitavam a tela quando alguém falou:

- Parece uma caceta!

Todos gargalharam. O desenho que o robô fez no chão de marte parecia um pau mesmo, o meu inclusive. Pela quantia de risada ali, todos deveriam estar pensando a mesma coisa que eu, todos estavam vendo seus cacetes desenhados em marte passando no jornal nacional.

O Filipinho, com quem eu dividia minha cerveja, disse que mesmo com o homem em marte ele ainda não sabia ler. Foi quando pensei uma das coisas mais bonitas da minha vida: ir pra marte não é um progresso, mas uma atitude triste pra caramba. Parece que a gente está fugindo pro deserto - sempre penso essas coisas e nunca consigo dizer, alias, nem sei de onde tirei a palavra 'progresso'.

- Pra quê ir pra marte, né? - Foi só o que falei pro Filipinho

- Talvez um dia todo mundo precise fugir pra lá.

- Prefiro morrer a fugir de mim mesmo. - Falei olhando para a marca redonda molhada que o copo da cerveja deixava na mesa.

- Não entendi. Só sei que meu jubréolo é maior que aquele do desenho que o robozinho fez lá - Ele disse e rimos. Eu ria mais ainda porque ele não tinha o dente da frente.


quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Injetável.


— Jean-Paul Sartre

São as correntes das veias de tudo que perpassam todos os caminhos, todos os cantos, rincões e sonhos. É a realidade por si só que se faz sonho e o sonho em si que se transforma em realidade, os dois com suas formas diferentes de serem ao mesmo tempo tudo e nada, sublimes e pífios, formadores da gente.

É a linha vertical inexistente que divide nosso corpo em duas partes iguais a grande responsável pelo fluxo da “carroça de tudo na estrada de nada”.  A subtração do outro consome o um que restou, ou seja, sem ser corpo não se é alma, não se é sem morrer, tampouco se é deus sem ser um pouco cachorro, e vice versa – bendito seja o inglês na sua conjectura no espelho de god e dog.

Não há religião e ateu que não combinem, pois todo ser humano é o tudo e o nada, inconsoláveis condenados a um universo de consolação, e a linha que divide o tudo absoluto sempre em dois - subtraindo-se todas as suas variações – é fluxo, onde mora deus sem existir e o homem sem saber.

É nesse espaço abstrato e real que os demônios subterrâneos da metáfora inspiram o comportamento violento do cotidiano, e os deuses da iluminação os seus correspondentes homens bons, mas sempre uns relacionados aos outros, um fluxo contínuo de vida em doses materiais e abstratas. Assim toda poesia é injetável e toda droga é eterna, uma vez que deuses e cães estão relacionados, e o que nos resta da experiência é a poesia, a poesia é uma grande injeção de tudo e tudo é um pico certeiro nas veias, as quais convergem todas para o coração que se divide em duas partes iguais, como os lados macho e fêmea em que se divide todo o universo.  A parte isso, o que sobra é um amontoado crescente de coisas e não coisas onde se trepa para alcançar: outro pico.

Toda poesia é injetável e o que não é isso, são meios para isso, como o “rabo pra aquém do lagarto remexidamente”

A picada d’agulha no couro, na veia, é o estralo sonhador epifanico que resulta no fluxo sanguíneo e imaterial onde a escuridão e a luz fazem as pazes.

O suposto equilíbrio de Yin e Yang de que goza o homem que injeta, é o mesmo que desfruta o poeta obcecado ao conseguir o que quer.

Fazer poesia é injetar, buscar sem saber o que, e isso é tudo. O bem, a vida, o fluxo.
Literatura é cultura e faz escolas, já a droga dita o ritmo do homem comum, e um lugar não é senão feito de homens, e a escola não é senão uma coisa humana culturalizadora por meio de injeções de poesia sobre homens de vício.

O perigo de se fazer poesia é sempre o mesmo de injetar-se: ter que responder constantemente a pergunta “para quê?”

Toda poesia é injetável porque não se respondem perguntas quando existir é o que te resta, afinal quem consola é aquele que não existe – deus? Um homem que não fuma? – e o pico da existência é poesia.

Isto não é uma poesia.

O surrealismo da alucinação é a grande pergunta do poeta: se eu imagino, por que não existe?


Não existindo um limite certo entre a loucura e a sanidade, eu me permito dizer que poesia é droga real, formada de imagens, das quais todo homem é o mais ingênuo refém. Portanto o mundo é imaginação, jogo de imagens, já que este se faz de homens.  

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

"A MORTE DO PAI"

"Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. 
E então para. Cedo ou tarde, mais dia, menos dia, cessa aquele movimento repetitivo e involuntário, e o sangue começa a escorrer para o ponto mais inferior do corpo, onde se acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma área escura e flácida numa pele cada vez mais pálida, tudo isso enquanto a temperatura cai, as juntas enrijecem e as entranhas se esvaem. 
Essas transformações das primeiras horas se dão lentamente e com tal constância que há um quê de ritualístico nelas, como se a vida capitulasse diante de regras determinadas, um tipo de gentlemen’s agreement que os representantes da morte respeitam enquanto aguardam a vida se retirar de cena para então invadirem o novo território. Por outro lado, é um processo inexorável. Bactérias, um exército delas, começam a se alastrar pelo interior do corpo sem que nada possa detê-las. Houvessem tentado apenas algumas horas antes, e teriam enfrentado uma resistência cerrada, mas agora tudo em volta está calmo, e elas avançam pelas profundezas escuras e úmidas. Chegam aos canais de Havers, às glândulas de Lieberkühn, às ilhotas de Langerhans. Chegam à cápsula de Bowman nos rins, à coluna de Clarke na medula, à substância escura no mesencéfalo. E chegam ao coração. Ele continua intacto, mas se recusa a pulsar, atividade para a qual toda a sua estrutura foi construída. É um cenário desolador e estranho, como uma fábrica que trabalhadores tivessem sido obrigados a evacuar às pressas, os veículos parados a projetar a luz amarela dos faróis na escuridão da floresta, os galpões abandonados, os vagões carregados sobre os trilhos, um atrás do outro, estacionados na encosta da montanha.
No exato instante em que a vida abandona o corpo, ele passa para os domínios da morte. As lâmpadas, as malas, os tapetes, as maçanetas, as janelas. A terra, os campos, os rios, as montanhas, as nuvens, o céu. Nada disso nos é estranho. Estamos permanentemente rodeados por objetos e fenômenos do mundo dos 
mortos. Ainda assim, poucas coisas nos causam mais desconforto do que ver alguém preso a essa condição, ao menos se julgarmos pelos esforços que empreendemos para manter os cadáveres longe dos nossos olhos. Nos grandes hospitais eles não são apenas escondidos em ambientes isolados, os corredores que levam até eles são ermos, com elevadores e acessos privativos, e, mesmo que acidentalmente topemos com eles, serão apenas corpos empurrados sobre macas, sempre cobertos por lençóis. Quando deixam o hospital, fazem-no por uma saída própria e são transportados em carros com vidros escurecidos, nas igrejas são velados em salões sem janelas, durante o funeral estão em caixões lacrados, até afundarem numa cova ou serem consumidos no calor de um forno. Difícil enxergar um objetivo prático em tudo isso. Os cadáveres poderiam muito bem, por exemplo, ser conduzidos descobertos pelos corredores dos hospitais e transportados em carros comuns sem representar risco a quem quer que fosse. O homem idoso que morre numa sessão de cinema poderia, da mesma forma, permanecer no seu assento até o filme terminar, ou durante a sessão seguinte. O professor que sofre um ataque súbito e tomba no pátio da escola não tem necessariamente que ser retirado dali no mesmo instante, não faz mal nenhum que o corpo continue no chão até que o zelador tenha tempo de cuidar dele, ainda que mais para o fim da tarde, talvez mesmo à noite. Se um pássaro decidir pousar sobre ele para bicá-lo, que diferença fará? Porventura o destino que o aguarda na cova será melhor somente porque não o presenciaremos? Contanto que o corpo não esteja bloqueando uma rua, não é preciso pressa, pois ele não vai morrer outra vez. Nesse caso, os dias de frio extremo no inverno são especialmente propícios. Mendigos que morrem congelados em bancos de praça ou debaixo de marquises, suicidas que saltam de prédios altos ou de pontes, senhoras idosas que despencam de escadarias, vítimas presas nas ferragens de veículos, o garoto embriagado que cai na água depois de uma noitada na cidade, a garotinha que vai parar debaixo do pneu de um ônibus, por que a pressa em ocultá-los? Decoro? O que seria mais decoroso que permitir ao pai e à mãe daquela garota encontrá-la uma ou duas horas mais tarde, deitada na neve ao lado do local do acidente, a cabeça esmagada tão visível quanto o restante do corpo, o cabelo empapado de sangue e o casaco imaculado? A céu aberto, sem segredos, do jeito que estava. Mas mesmo uma hora na neve é impensável. Uma cidade que não mantenha seus mortos longe dos olhos, que os deixe jazer nas ruas e calçadas, parques e estacionamentos, não é uma cidade, e sim um inferno. Não importa que esse inferno reflita de modo mais realista e profundo nossa conduta. Sabemos que ela é assim, mas nos recusamos a encará-la. Eis o ato coletivo de repressão simbolizado no ocultamento dos nossos mortos."

karl ove knausgård
A morte do pai - Minha luta 1



terça-feira, 13 de agosto de 2013

Redenção





Quando novembro vai alto e você vendeu suas férias é duro sair para trabalhar antes das sete da manhã.

Manobrando o carro no pé do prédio, caiu um catarro enorme no para-brisas, uma gosma de alguém pouco a frente da sua cara. O dia saía da toca, ele saltou para fora do carro e o vizinho do andar de cima o fitava da janela.

Desce aqui limpar isso seu preto nojento. 

Eu vou descer é pra te arrebentar filho da puta.

Quando o homem desapareceu da janela ele pegou a espingarda que descansava no porta malas e ficou do lado de fora da porta de entrada do bloco, de onde o negro surgiria após descer as escadarias. Agitado e despreparado como um porco, o negro ainda passava pela porta quando a coronhada atingiu sua fonte. Tombou estatelado no chão, sem camiseta e de shorts no meio da bunda, feito um monte marrom gelatinoso. O boné foi embaixo de outro carro que estava por ali.

O chão era de concreto e residiam ali pequenos cascalhos, quando com sua bota o homem pressionava o pescoço do preto desnorteado que quando conseguiu encontrar um norte, olhou vesgo para o buraco do cano da espingarda pouco á frente da sua fuça.

Tu vai pegar essa vagabunda dessa tua mulher e te arrancar desse prédio nos próximos dias por conta, senão o IML vem te buscar, pedaço de bosta. Foi o que ele disse encostando o olho seco da arma na testa do miserável agora assustado.

Ele tirou o pé de cima do preto que se levantou acuado e subiu pelas escadas de onde tinha recém descido, tentando impedir o sangue de correr pela orelha.

Quando o homem deu partida no carro e acionou o limpador de para-brisas, melecando tudo com o catarro, com a espingarda já no porta malas de novo, o sol ainda nascia por cima dos muros, cercas, telhados, chaminés e para-raios.

O dia sempre vai acontecer. Você não tem escolha. A vida é um nada que vai a lugar nenhum e no meio dessa palhaçada toda a maior fração humana é bestial, não reconhece a própria existência, não reconhece os próprios espaços e desrespeita o dos outros, para essas pessoas o preço é uma dignidade mal resolvida ou o sangue.

Os dois dias seguintes foram normais, quando no fim do terceiro, ao chegar em casa, se deparou com uma intimação para comparecer à delegacia ás nove horas da manhã da próxima segunda-feira. A espingarda já havia sido deixada numa caixa na casa da velha que benzia seu filho quando recém nascido – o menino tivera uma doença que depois se revelou ser coqueluche, quando moraram nessa cidade pela primeira vez, há quatro anos.

A delegacia era um entulho. Papeis de todo tipo em cima de mesas velhas com nomes cravados tortos e a toa, e o que parecia ser sempre uma organização diferente, cômodo por cômodo e as vezes até no mesmo cômodo, de fato revelava que não havia organização nenhuma. Gente hipnotizada na frente de computadores, telefones tocando e aqueles papeis todos sibilando com o vento. Janelas de ferro. Ele havia sido acusado de agressão corporal por parte do negro, cujo nome era Elias. A moça fez algumas perguntas desinteressada, e um rapaz de óculos e topete escrevia rápido em um computador amarelado tudo o que ele dizia.

 Não conheço esse rapaz e isso tudo deve ser um grande engano. Faz poucas semanas que fui transferido pra cá, morei aqui alguns anos atrás e estou de volta agora, sou novo no condomínio, não conheço ele.

  Tudo aconteceu formalmente e de uma maneira bastante desdenhosa, ninguém levou a queixa muito a sério. A mulher logo ofereceu outros papeis para ele assinar – tudo passa por papeis nessa vida – fechou arquivos, empurrou umas gavetas, puxou outras e lhe entregou um envelope em seu nome. O negro só quis agir em tom de ameaça, pelo que se entendeu, não comentou a respeito da arma e não haviam testemunhas. O envelope tratava da audiência que teriam dentro de quarenta e cinco dias.
     
      O negro não dava sinais de que se mudaria, continuava fodendo escandalosamente e sem pena a sua mulher antes de ficarem completamente em silêncio, todos os dias, sempre cerca de meia noite, e seu pinscher continuava preso na sacada o fim de semana todo, latindo rouco, tremendo de frio e dando sinais de que dormira por exaustão.
     
      Alguns dias depois, o homem recortou cerca de sessenta centímetros do canto de um papelão, e às três da manhã colocou a tira do papelão carregada com um filete generoso de pólvora exatamente embaixo da porta do apartamento do negro, o pinscher não fez todo o alarde irritante que pinschers fazem. Ele acendeu e a pólvora fez um estouro surdo e suave seguido por um chiado de naja, as chamas criaram tentáculos vermelhos alaranjados cada vez maiores e começaram a escalar a porta com mais volume. Ele desceu para o seu apartamento.
     
     A balbúrdia foi generalizada no andar de cima e envolveu todos os vizinhos. Como é bom atacar gente nojenta.       
     
     Três dias depois, o negro suado, sua mulher rija e dois chapas ébrios, todos de shorts no meio da bunda formando um time bizarro, ficaram a tarde toda de sábado subindo e descendo as escadas com móveis e foram embora, levando com eles uma carga enorme de angústia, incomodo e nojo, permitindo pairar enfim um silêncio substancial, o assovio calmo de uma majestade ao fim do dia.
     
    No dia da audiência o homem e seu advogado esperaram em qualquer lugar do fórum por algum tempo além do horário marcado, até serem avisados que o acusador não apareceu. Provavelmente estivesse fazendo inalação. O advogado ficou encarregado do arquivamento do processo e dias mais tarde foi avisado que a queixa fora retirada.

Cachorro que late não morde.

Três ou quatro meses depois, três meses depois, o negro atravessou a rua debaixo de uma sombrinha em frente ao carro do homem parado no semáforo, de cabeça meio baixa como se gotículas da água gélida estivessem caindo na sua nuca. Deu uma corridinha e um pulinho da rua à calçada e foi o máximo ao canto dessa calçada, caminhou meio encolhido para se proteger das águas que caiam do céu. Parecia um cachorro recém chutado indo para um canto qualquer de rabo no meio das pernas e com um olhar de vítima, mas é de fato o câncer do mundo. Teríamos um ambiente mais Justo se seres humanos não tivessem que “domesticar” outros animais selvagens para levantar sua estima, para sua estimação. Há quem diga que alguns donos acabam parecidos com seus animais. Talvez seja uma das poucas verdades do mundo. Pobre tem pinscher e playboy tem poodle.

Ajoelhado na missa de Santo Antônio ele abriu os olhos para fitar Jesus. É para sua crucificação que nos ajoelhamos, sua ressurreição é secundária. É a catástrofe que nos alimenta e nunca houve redenção, por isso também nunca haverá liberdade. Continuou ajoelhado.


quarta-feira, 8 de maio de 2013

Só bicho é livre



Conversa em lugar alto:

- Eu sei que há coisas ruins de serem ditas, que quando a gente transforma algumas coisas em palavras parece que algo se perdeu. que é impossível de traduzir algumas coisas que são intimas e parecem incapazes de existirem fora da gente, mas olhando essas luzes alaranjadas todas, enfileiradas de postes, ao longo das ruas, tenho a impressão que a cidade é maior que o homem.

- Como assim?

- sei que parece um pensamento juvenil, eu pensava isso quando tinha uns dezessete ou dezoito anos, que um dia todos vão morrer e as cidades vão continuar. mas o que eu penso hoje é que parece que esses buracos dos tijolos estão sempre espiando a rotatividade das gerações que andam por aí, com um ar de superioridade, como se soubessem que durarão mais. Entende?

- acho que sim... você guardou o isqueiro? ... a cidade é a gente por fora...

- pois é. a cidade está sempre se transformando. existe uma lei que diz que alguns metros, não sei quantos, para dentro do seu lote, a partir da rua, não pode ser construído, pois um dia as ruas vão precisar ser aumentadas, porque sempre vem mais gente para as cidades. as cidades se transformam com o processo migratório, talvez assim sejam também as pessoas.

- mas todo mundo nasce dentro de alguma cidade. A população não aumenta apenas porque veio gente de fora, mas as pessoas brotam de dentro também. vêm do útero. não apenas do nordeste ou do rio grande. como as flores dos canteiros ... as cidades não morrem. já pensou se todo mundo literalmente ressuscitasse como acreditam que aconteceu com Jesus?

- é curioso pensar que um ser humano que hoje existe, e há uma semana não existia, têm os mesmos direitos que os outros seres humanos que estão aqui há tanto tempo.

-é a vida. orgânica. são as leis. é assim mesmo.

- sei que é assim. mas é curioso pensar na fragilidade do ser humano, e do que nos suporta como seres humanos. as leis ... Há uma passagem de São Bernardo que diz que um problema grave que temos é que as leis não são feitas por especialistas, advogados, juízes, promotores, etc., mas por políticos.

- não quero falar disso.  

...

- o que vocês comiam na cadeia?

- o que se come fora da cadeia ué. arroz, feijão, carne, purê.

- então tava tranqüilo...

- você passa por vários períodos na cadeia. no começo é tudo remorso, arrependimento e memória. logo você começa a pensar que há tantos anos você não come um cachorro quente, uma batatinha frita, não escuta o som do gelo batendo nas laterais do copo e o barulinho do gás ou o formato da espuma. dá uma certa tristeza de pensar que você teve de ir preso para dar valor pra essas coisas que sempre estiveram tão perto de você e agora existe tanta batatinha para ser frita no mundo, mas tiraram esse direito seu. nesse momento os sonhos do teu estomago num mundo cheio de delícias fazem você querer sair logo da cadeia, e ir trabalhar para reduzir pena. mas logo o tempo deixa de passar e você se torna mais espiritualizado. você já não lembra de tanta coisa e deseja menos ainda. só pensa na tua situação de existir, sem antes nem depois ou qualquer coisa. foi nessa época que comecei a pegar o gosto pela leitura, que eu tava te falando. foi nessa época que começou aquele grupo de leitura na cadeia. eu lia Tabacaria toda santa noite antes de dormir. era mais importante que o cigarro, e assim foi por mais de um ano.   

No terraço do prédio onde estavam, era possível nessa hora da noite escutar os sons agudos que os morcegos emitem para reconhecer o ambiente que estão sobrevoando, e por sorte farejar algum rato ou inseto.

- o que mais você leu na cadeia?

- lá eu aprendi a ler. aprendi o que é ler. não só eu. todo o pessoal do nosso pavilhão que escolheu leitura. começamos a trabalhar mais depois do grupo de leitura, o pavilhão parou de ter os contratempos, era como o delegado chamava as brigas. até o pessoal da cozinha, a gente sabia que estava mais sério. a comida começou a ficar boa. o pessoal cumpria as metas de trabalho em menos tempo e começou a fazer fila no chuveiro. eu não sei te dizer bem certo, mas todo mundo sentia um espírito de coletividade e esperança depois do grupo de leitura.

- outro dia eu ouvi falar que tem um escritor, acho que é inglês, que cada capítulo do livro dele equivale a uma cor ... a que cor você associa a prisão ... ou o teu tempo preso ...

- cinza. sem dúvida.