ranzinza

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domingo, 23 de setembro de 2012

Sobre a doença da nona


Dois erros não fazem um acerto, mas é incrível a frase da bíblia que diz que “deus escreve certo por linhas tortas”, afinal, a doença da minha avó me fez perceber a quão boa ela é.


Moramos longe, mais de cem quilômetros da casa dela, e certa tarde quando meu irmão chegou lá, foi recebido com um abraço caloroso atípico dessas velhas polonesas daqui. Um beijo no rosto, e considerações sobre como ele era bonito. Alguns agradecimentos foram despertados em meu irmão. Quando num sopro leviano, desses que arrepiam cada palmo de pele - uma tormenta no âmago do indivíduo - a nona perguntou, com o mesmo sorriso de antes, o mesmo olho redondo e claro que parece ter dado a volta ao mundo e retornado à infância, sem mudar a expressão: “mas quem é você?”

A bíblia fala muito sobre o inferno.

Alzheimer é a capital do inferno.

Talvez por isso as crianças choram quando nascem, por não possuírem memória. O inferno não é os outros, o inferno é não saber quem são os outros. O inferno é existir, debilitado, vivo, e não saber do antes, dos filhos, dos pais, de você. Não saber mais ver as horas no relógio.

Eu nunca gostei da minha avó, mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, e dois erros não fazem um acerto, então isso não faz de mim uma pessoa má a partir desse momento que percebo que ela é uma pessoa boa. Ela não é uma pessoa boa por ter Alzheimer, ela é uma pessoa boa por depois do Alzheimer ter apagado toda a sua vida, ter restado a ela um abraço e um beijo no rosto do meu irmão, seu neto, sem saber quem ele era, e sem lembrar que a cor dos olhos dele eram a cor dos olhos dela.

Depois de oitenta e nove anos de roça, isso me leva a pensar, de novo, que talvez sejamos mesmo bons selvagens. E me leva a querer, de novo, quebrar tudo ao meu redor quando ouço que “tempo é dinheiro”. Meu sangue sobe. O tempo é o tecido da vida.

Não se confecciona a vida, se confecciona na vida. A vida não é a roupa, a roupa faz parte da vida. Aliás, a maioria das coisas que constituem a vida, hoje, se vendem em caixinhas, mas não existe uma caixa grande o suficiente para se colocar a vida inteira, talvez por isso chamem o caixão de caixão.

A morte é Símbolo, como é o amor. O abraço e o beijo da nona.





PS: nos últimos anos criei o hábito de escrever, escrevi isso pensando na senhora, e achei conveniente lhe mandar. Aliás, certo dia estraguei suas flores com minha bola, queimei seu chuveiro, roubei seu dinheiro e lhe xinguei. Agora quero que me desculpe.





Ass: o único dos seus 17 netos sem seus olhos azuis.