Eu costumo levantar
cedinho nos sábados e ir correr na pista de atletismo na saída da cidade, algumas
vezes faço isso nas sextas à noite também. Gosto de estar sozinho naquele enorme
espaço aberto enquanto corro, e raramente há alguém lá nestes horários.
As ruas estavam
completamente molhadas e haviam poças no meio dos terrenos e construções
inacabadas naquela manhã. Ao chegar na pista, ao sair do carro, vi um filhote
branco de pitbull amarrado à tela que cerca o local. Ele estava ensopado, em pé
na grama molhada e suas pernas tremiam, parecia exausto e em intervalos
simétricos de cinco segundos, com o olhar perdido, dava um latido rouco que
ecoava por todo o lugar. Imaginei que ele tivesse sido esquecido ali na noite
anterior, e como carrego um certo trauma de cachorros desde a infância, passei reto
e receoso ao lado deste e entrei no portão de acesso à pista.
O trajeto tem oito
raias e um total de 400 metros, no meio do circuito há um enorme gramado com
duas traves móveis de futebol, amarelas e sem redes. No outro extremo da
entrada ficam as armações de ferro e bancos de concreto destinados aos
alongamentos. Como sempre, naquela manhã eu caminhei esta meia volta, do portão
aos ferros, em total silencio, olhando para os meus tênis, a cidade longe, as
árvores, os morros e o céu, como se estivesse tentando sentir o que este sábado
tinha a oferecer.
Eu ouvia as latidas
pausadas miseráveis do pitbull enquanto caminhava, percebi que ia me afastando
delas, mas mesmo do outro lado, nos ferros, ainda daria para escutá-los e
aquela rouquidão abandonada e triste me acompanharia ritmada a manhã inteira.
Eu buscava o transe que toma conta do corpo e dos pensamentos quando se corre
em silêncio e sozinho, mas isso é coisa muito delicada e qualquer detalhe me tomava
de assalto, naquela manhã seria a situação do cão e a melodia do seu latido.
Mas ao chegar nos ferros vi alguém caído. Era um rosto muito familiar embora
de alguém que eu não lembrava, não conhecia, tive um tipo de vertigem dentro do
peito... fiquei confuso; também porque levei um breve susto, pensei que o
sujeito pudesse estar bêbado e dormindo mas intuitivamente percebi que não era
o caso – agora percebo os detalhes que li irracionalmente: ele estava caído de
forma que chovia no seu rosto, o que o faria acordar caso estivesse bêbado,
pois senti que estava ali há muitas horas devido ao quanto estava molhado,
branco e com os olhos fundos; por fim ele estava de shorts de corrida, meias
brancas e tênis da olímpicos -, percebi portanto que se tratava de um cadáver
da noite anterior, e como tudo o que eu não precisava na minha vida naqueles
dias, que seguiam o fim do meu casamento de nove anos, era envolvimento com um
cadáver, com um crime, com o que quer que seja ... dei meia volta logo que me deparei
com a cena, caminhei os mesmos duzentos metros no sentido contrário e um pouco
mais rápido do que antes, dei uma olhada rápida no cachorro até ele dar a
próxima latida, entrei no meu carro e saí dali.
De acordo com o laudo a polícia foi chamada para o local às dez e quinze
da manhã, ao vasculhar o entorno encontraram uma garrafa de água junto com o
celular e a chave da casa do sujeito em um canto próximo ao corpo. A ultima ligação
feita daquele aparelho era para uma mulher chamada Giovana, que deu o endereço
do apartamento do indivíduo e disse que seu nome era Pedro. No apartamento
havia um revolver calibre 38 registrado em seu nome, além de evidencias que
alguém esteve ali em menos de vinte e quatro horas: louça úmida no escorredor,
um par de botas com barro semi-molhado frente à porta e do lado de uma mesinha
branca onde haviam cigarros, relaxantes musculares, cartelas de paracetamol,
omeprazol e benegrip, além da pequena chave do cadeado da bicicleta que estava
no estacionamento, com a graxa da correia ainda úmida, e uma lista de compras
onde estavam listados carne, cerveja, molho, cebolas, pasta de dente e
camisinha. Também haviam indícios que o pitbull pertencia ao indivíduo: ração e
jornais pelos cantos.
Fotos de vários ângulos dos cômodos do apartamento, fotos da bicicleta, da lista de compras, e
a própria lista de compras estão nos laudos, onde está escrito também que às
11h40 da manhã foi encontrado pulso no indivíduo que teve que ser encaminhado
à UTI, onde permaneceu do dia 08/08 ao dia 14/08.
Hoje é dia 16/08, o
que quer dizer que há dois dias estou no quarto do hospital, com o braço
direito paralisado, sendo sedado regularmente. Eu não lembro de nada. O médico
está sentado aqui do meu lado, e me entregou o laudo com as descrições dos
fatos e as imagens da casa como tentativa de recobrir minha memória. Ele me
disse ao entregar o laudo que sofri a descarga elétrica de um raio na sexta a
noite, quando fazia alongamentos nos ferros da pista de atletismo, que é um
lugar propicio à situação por ser um lugar aberto além de ter as tais barras.
Mas eu não lembro de
mim. Não sei quem sou nem onde estou ou pra onde vou. Tudo o que lembro eu vos
disse.
Alias, há menos de
um minuto uma mulher maravilhosa entrou pela porta, com o cabelo negro parcialmente
preso em cima, e a franja para baixo, com o rosto de uma harmonia exuberante que me causou uma
vertigem forte na alma quando a vi, como se dentro de mim houvesse raízes
profundas onde fluxos contínuos de calor nascessem. Ela me viu, começou a
chorar e me abraçou, e eu estou agora aqui com o queixo em seus ombros, vendo o
sol entrar pela janela e ser fatiado pela persiana entreaberta.
A única coisa que eu
sei é que a amo, e aliás, acho que o filhote de pitbull eu
havia adotado dois dias antes e o chamaria de Judas.