ranzinza

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sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Judas


Eu costumo levantar cedinho nos sábados e ir correr na pista de atletismo na saída da cidade, algumas vezes faço isso nas sextas à noite também. Gosto de estar sozinho naquele enorme espaço aberto enquanto corro, e raramente há alguém lá nestes horários.

As ruas estavam completamente molhadas e haviam poças no meio dos terrenos e construções inacabadas naquela manhã. Ao chegar na pista, ao sair do carro, vi um filhote branco de pitbull amarrado à tela que cerca o local. Ele estava ensopado, em pé na grama molhada e suas pernas tremiam, parecia exausto e em intervalos simétricos de cinco segundos, com o olhar perdido, dava um latido rouco que ecoava por todo o lugar. Imaginei que ele tivesse sido esquecido ali na noite anterior, e como carrego um certo trauma de cachorros desde a infância, passei reto e receoso ao lado deste e entrei no portão de acesso à pista.

O trajeto tem oito raias e um total de 400 metros, no meio do circuito há um enorme gramado com duas traves móveis de futebol, amarelas e sem redes. No outro extremo da entrada ficam as armações de ferro e bancos de concreto destinados aos alongamentos. Como sempre, naquela manhã eu caminhei esta meia volta, do portão aos ferros, em total silencio, olhando para os meus tênis, a cidade longe, as árvores, os morros e o céu, como se estivesse tentando sentir o que este sábado tinha a oferecer.

Eu ouvia as latidas pausadas miseráveis do pitbull enquanto caminhava, percebi que ia me afastando delas, mas mesmo do outro lado, nos ferros, ainda daria para escutá-los e aquela rouquidão abandonada e triste me acompanharia ritmada a manhã inteira. Eu buscava o transe que toma conta do corpo e dos pensamentos quando se corre em silêncio e sozinho, mas isso é coisa muito delicada e qualquer detalhe me tomava de assalto, naquela manhã seria a situação do cão e a melodia do seu latido.

Mas ao chegar nos ferros vi alguém caído. Era um rosto muito familiar embora de alguém que eu não lembrava, não conhecia, tive um tipo de vertigem dentro do peito... fiquei confuso; também porque levei um breve susto, pensei que o sujeito pudesse estar bêbado e dormindo mas intuitivamente percebi que não era o caso – agora percebo os detalhes que li irracionalmente: ele estava caído de forma que chovia no seu rosto, o que o faria acordar caso estivesse bêbado, pois senti que estava ali há muitas horas devido ao quanto estava molhado, branco e com os olhos fundos; por fim ele estava de shorts de corrida, meias brancas e tênis da olímpicos -, percebi portanto que se tratava de um cadáver da noite anterior, e como tudo o que eu não precisava na minha vida naqueles dias, que seguiam o fim do meu casamento de nove anos, era envolvimento com um cadáver, com um crime, com o que quer que seja ... dei meia volta logo que me deparei com a cena, caminhei os mesmos duzentos metros no sentido contrário e um pouco mais rápido do que antes, dei uma olhada rápida no cachorro até ele dar a próxima latida, entrei no meu carro e saí dali.

De acordo com o laudo a polícia foi chamada para o local às dez e quinze da manhã, ao vasculhar o entorno encontraram uma garrafa de água junto com o celular e a chave da casa do sujeito em um canto próximo ao corpo. A ultima ligação feita daquele aparelho era para uma mulher chamada Giovana, que deu o endereço do apartamento do indivíduo e disse que seu nome era Pedro. No apartamento havia um revolver calibre 38 registrado em seu nome, além de evidencias que alguém esteve ali em menos de vinte e quatro horas: louça úmida no escorredor, um par de botas com barro semi-molhado frente à porta e do lado de uma mesinha branca onde haviam cigarros, relaxantes musculares, cartelas de paracetamol, omeprazol e benegrip, além da pequena chave do cadeado da bicicleta que estava no estacionamento, com a graxa da correia ainda úmida, e uma lista de compras onde estavam listados carne, cerveja, molho, cebolas, pasta de dente e camisinha. Também haviam indícios que o pitbull pertencia ao indivíduo: ração e jornais pelos cantos.

Fotos de vários ângulos dos cômodos do apartamento, fotos da bicicleta, da lista de compras, e a própria lista de compras estão nos laudos, onde está escrito também que às 11h40 da manhã foi encontrado pulso no indivíduo que teve que ser encaminhado à UTI, onde permaneceu do dia 08/08 ao dia 14/08.

Hoje é dia 16/08, o que quer dizer que há dois dias estou no quarto do hospital, com o braço direito paralisado, sendo sedado regularmente. Eu não lembro de nada. O médico está sentado aqui do meu lado, e me entregou o laudo com as descrições dos fatos e as imagens da casa como tentativa de recobrir minha memória. Ele me disse ao entregar o laudo que sofri a descarga elétrica de um raio na sexta a noite, quando fazia alongamentos nos ferros da pista de atletismo, que é um lugar propicio à situação por ser um lugar aberto além de ter as tais barras.

Mas eu não lembro de mim. Não sei quem sou nem onde estou ou pra onde vou. Tudo o que lembro eu vos disse.

Alias, há menos de um minuto uma mulher maravilhosa entrou pela porta, com o cabelo negro parcialmente preso em cima, e a franja para baixo, com o rosto de uma harmonia exuberante que me causou uma vertigem forte na alma quando a vi, como se dentro de mim houvesse raízes profundas onde fluxos contínuos de calor nascessem. Ela me viu, começou a chorar e me abraçou, e eu estou agora aqui com o queixo em seus ombros, vendo o sol entrar pela janela e ser fatiado pela persiana entreaberta.

A única coisa que eu sei é que a amo, e aliás, acho que o filhote de pitbull eu havia adotado dois dias antes e o chamaria de Judas.