ranzinza

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terça-feira, 20 de setembro de 2016

A MESMA COISA QUE SE REPETE



Juan percebeu que os ferros da jaula começaram a entortar. Sempre com o lado esquerdo da cabeça o seu monstro nunca parava de bater naquelas hastes. Nunca parava. Nunca parou. Nunca pararia. As pancadas entortavam mais e mais os ferros e o rosto do monstro. Cada cabeçada dava um eco que se estendia como um rio na alma. O beco era úmido. Talvez em algum momento repente em alguma cabeçada especial os ferros quebrassem. Talvez com o tempo os ferros entortassem a ponto de o monstro conseguir colocar a cabeça para fora e então todo o seu corpo. A cabeça era maior que o corpo. Os dedos atrofiados agarrados caoticamente nas grades. Os olhos esbugalhados brancos e desorientados estavam obstinados a destruir o cárcere. Estes olhos as vezes fitavam Juan que não sabia se aquilo era ódio ou cegueira. A boca babava. Da baba sobreviviam ratos sorventes que perambulavam pelos cantos. A cólera não é universal. Ela está no coração humano. No universo só as estrelas. Juan esperava com medo. Do outro lado da grade. Anos.

*

O mercado não é lá grande coisa, na cidade uns o chamam mercadinho outros chamam de mercado, é relativo: não mais do que cinco prateleiras que fazem seis corredores e vácuo para frutas, carvão, açougue e padaria. Broma, ou dona Broma o administrava fazia anos, do seu jeito. Nos últimos meses procurou uma fábrica de sofás para conseguir algumas estopas, grátis se possível. Depois de ver um vídeo no celular sobre fabricação de bolsas a partir de retalhos, percebeu que com as estopas alguma jovem poderia fabricar as bolsas para serem vendidas no mercado.

 No hall de cima do mercadinho, o setor administrativo, onde se pode ter uma visão panorâmica de todo o lugar, nos últimos meses, propositalmente, Broma passou tanto tempo em conversas telefônicas com os responsáveis pela fábrica de sofás que eles já estavam em tal tom de amistosidade que traziam para ela em mãos semanalmente as estopas, sem custo.
Logo uma menina de 16 anos tinha o emprego mecânico de fabricar bolsas e poderia no fim do primeiro mês comprar a prestações o celular que tanto queria. No fim deste primeiro mês o lucro de Broma era de um terço dos seus custos. 

*

Brócolis refogado na manteiga, carne moída, ovo mexido com queijo, arroz, macarrão e refrigerante foi o que os irmãos prepararam para o almoço. A mãe tinha um mercadinho e o pai era um médico sem residência, ambos chegavam a noite e saiam pela manhã, assim os irmãos almoçavam sozinhos.
Espetando um brócolis com o garfo o mais velho falou:

- comprei a HQ da “metamorfose”

- pega lá

O mais velho buscou no quarto e o mais novo mastigava sem parar e repetitivamente levava as garfadas à boca enquanto folheava os quadrinhos ao lado do prato.

- onde tu comprou?

- na internet. Usei o cartão da mãe

- hum... tu sabe que o Gregor Samsa não é uma barata né?

- Claro que é! O mais velho pegou a HQ fechou e apontou para a capa, onde tinha uma barata estatelada.

- não. Ele é um inseto. O Kafka escreveu só “inseto”. Nas várias ilustrações para os quadrinhos que existe eles precisam ilustrar esse “inseto” e geralmente usam a barata não sei porquê.

- A barata fica na parede e come as coisas asquerosas que o Gregor Samsa começa a comer depois de metamorfoseado.

- ainda assim não gosto. Essa história de que uma imagem vale mais do que mil palavras só faz sentido nesses dias de tecnicismo mecânico que vivemos...

- aprimorar a técnica é fundamental...

- desde que não ofusque a humanidade, o espontâneo, a abstração... você sabe qual a primeira preocupação do Samsa quando vira um inseto?

O mais velho pega a historia e procura a primeira página puxando com o garfo uma porção do ovo que estica o queijo derretido

- ir trabalhar?

- sim. Ele virou definitivamente um inseto. Substituível. Facilmente eliminável. Sua cabeça enferrujou. Esse é o jogo.

O irmão mais velho pensou enquanto levou o garfo à boca umas três vezes sem parar de mastigar

- você viu que o pai anda estranho?

- a mãe também

Foguetes estouraram. Os tambores e a marcha que vinham de longe agora passavam na frente da casa. Pararam de comer e foram ver

- é o sindicato de novo

O mais novo sentou no puf pra continuar lendo “Kitchin”.

*

Os loucos todos se animaram com os foguetes que começaram a estourar mais perto e os tambores que se aproximavam e a marcha que vinha. Se amontoaram nas janelas gradeadas e olharam lá pra baixo. Uns babavam, uns esbugalhavam os olhos brancos sem definir se era ódio ou curiosidade e forçavam os narizes contra as grades da janela. Uns aplaudiam, uns balbuciavam. Uns andavam em círculos. Uns riam soluçando. Uns riam sem barulho. Uns choravam. Uns tapavam os ouvidos. Outros nem se mexeram. Outros continuaram imersos em algo. Alguns viram do outro lado da rua na área da casa dois rapazes, um maior e um menor, um segurava um tipo de revista e comentava enquanto o outro ouvia e parecia analisar tudo.

O doutor e os enfermeiros apareceram todos de branco, talvez para se camuflarem no corredor e nas paredes e mandaram todos voltarem a fazer o que faziam. Uns então continuaram caminhando em círculos, outros contando nos dedos, mas o número mais expressivo deles voltou a picotear pedaços de espuma, obviamente sem propósito nenhum, era apenas uma maneira de manter suas cabeças ocupadas. Do lado de cada um deles ia se erguendo uma pequena duna de espuma, conforme eles iam desmanchando colchões e travesseiro e ursinhos e sofás.

Dizem que o inferno é a eterna repetição, embora aquela ala do hospício parecesse muito um purgatório, que dizem também por aí que é o lugar dos indecisos. 

*

As marchas do sindicato estavam começando a se tornar constantes. Fluíam ruas abaixo com bandeiras sincronizadas e palavras que se repetiam nos megafones. Dos fins de semana eles agora invadiam a terça-feira.  Foguetes saiam das mãos de alguns de repente com tanta força que pareciam sugados pelo céu. Explodiam os foguetes constantemente. Muitos foguetes.

Os foguetes eram de doze tiros, cada caixa tinha doze foguetes e eles conseguiram doze caixas destes foguetes.

O país ia de mal a pior, aos poucos, como um câncer que está diagnosticado mas não se tem o dinheiro para os remédios nem para a quimioterapia. Essa gente então reclamava. Barbudos, gente de boné, mulheres de cabelo solto, curto ou com coques presos em cima da cabeça. Tentavam despertar a todos para algo que se escondia dentro do escuro do organismo.

A vida seguia em frente assim ali. O amanha preocupava enquanto o dia se encerrava. O sol se punha lindo na cidade plana enquanto mais foguetes estouravam. O vento levava o cheiro suave da pólvora pra dentro dos banheiros das casas que se repetiam.

EPÍLOGO:

Poucos meses depois da morte da sua namorada, ele ficou sabendo por meio de algum contato póstumo com a família dela que as pessoas de um instituto tinham oferecido dinheiro para fazer alguns testes com ela. A família dela era humilde e simplesmente submeteu, o corpo e a documentação.

Ele sabia do que se tratava o instituto e em conversas informais conseguiu dados relevantes de quão grotesca era a experiência.

Fizeram download dos dados neurológicos dela para um arquivo de computador.

Acredita-se que as memórias humanas estão armazenadas em determinados locais do cérebro humano e esta menina foi uma das muitas pessoas usadas neste tipo de experiência. O objetivo a seguir era conseguir construir um corpo que se alinhasse ao funcionamento destes dados de uma vida inteira já vivida: sentimentos, reações, emoções, linguagem verbal, linguagem corporal, ou seja, tudo que define o humano enquanto humano orgânico.

Estouravam foguetes na rua enquanto ele enchia de pregos a cabeça da marreta. Ele não desvirtuou as marteladas, que continuavam determinadas. Os pregos enormes atravessavam a marreta de forma que suas pontas ficassem expostas do outro lado. Logo que um prego atravessava a marreta ele já pegava outro prego do plástico e por um instante segurava o martelo na boca, ajeitava a ponta do prego no pau e já o martelava novamente. Isso o levou a um tipo de transe. Os foguetes talvez tenham se percebido em algum plano de fundo da sua consciência.

“Ela”, ou “aquilo”, o estaria numa sala de laboratório, de acordo com a simbiose que os dois sempre tiveram desde que se conheceram ele imaginava “ela” o esperando, mesmo sem saber que ele iria. Antes se viam sempre com uma paixão fulminante que ia de beijos à transa onde quer que tivessem um mínimo de esconderijo. Se apertavam, se acariciavam, fodiam e se juravam à eternidade. Mas depois que ele terminasse aquele porrete de cabeça de pregos ele invadiria qualquer que seja o espaço que “aquilo” está e com golpes que o esgotariam as noções transformaria aquilo em farelos. Chega.


segunda-feira, 5 de setembro de 2016

NOTA SOBRE O TAMANHO DAS COISAS

Vivendo enclausurados em nós mesmos esquecemos o nosso tamanho, mas somos lembrados dele quando temos a oportunidade de observar o horizonte amplo ruborizado antes da tempestade, a tempestade, ou as estrelas em uma noite limpa. Esse esquecimento é um vácuo que constantemente nutrimos sem saber, mas que porventura se desfaz e a verdade então assusta. Digo "a verdade" porque não somos senão parte da natureza e do espaço e as vezes temos que perceber isso.
Mas somos covardes, diante do mar ou dos grand canyons, e inversamente covardes diante de organismos igualmente vivos mas menores em seus tamahos: aranhas, vespas, porcos e frangos. Há um mistério no tratamento aos cachorros e gatos e a divisão destes de acordo com nossos pontos de vista também.
Nós não somos senão contraditórios, sozinhos e simbólicos. Isso é difícil de aceitar. Manipulamos o tamanho das coisas para poder aceitar isso mais facilmente. Manipulamos o tamanho do nosso coração e do compromisso de uns com os outros, isso em corrente social nos faz esquecer que somos sozinhos.
O mundo não vai acabar. Só as pessoas vão.