Juan percebeu que os ferros da
jaula começaram a entortar. Sempre com o lado esquerdo da cabeça o seu monstro
nunca parava de bater naquelas hastes. Nunca parava. Nunca parou. Nunca
pararia. As pancadas entortavam mais e mais os ferros e o rosto do monstro.
Cada cabeçada dava um eco que se estendia como um rio na alma. O beco era
úmido. Talvez em algum momento repente em alguma cabeçada especial os ferros
quebrassem. Talvez com o tempo os ferros entortassem a ponto de o monstro
conseguir colocar a cabeça para fora e então todo o seu corpo. A cabeça era
maior que o corpo. Os dedos atrofiados agarrados caoticamente nas grades. Os
olhos esbugalhados brancos e desorientados estavam obstinados a destruir o
cárcere. Estes olhos as vezes fitavam Juan que não sabia se aquilo era ódio ou
cegueira. A boca babava. Da baba sobreviviam ratos sorventes que perambulavam
pelos cantos. A cólera não é universal. Ela está no coração humano. No universo
só as estrelas. Juan esperava com medo. Do outro lado da grade. Anos.
*
O mercado não é lá grande coisa,
na cidade uns o chamam mercadinho outros chamam de mercado, é relativo: não
mais do que cinco prateleiras que fazem seis corredores e vácuo para frutas,
carvão, açougue e padaria. Broma, ou dona Broma o administrava fazia anos, do
seu jeito. Nos últimos meses procurou uma fábrica de sofás para conseguir
algumas estopas, grátis se possível. Depois de ver um vídeo no celular sobre
fabricação de bolsas a partir de retalhos, percebeu que com as estopas alguma jovem
poderia fabricar as bolsas para serem vendidas no mercado.
No hall de cima do mercadinho, o setor
administrativo, onde se pode ter uma visão panorâmica de todo o lugar, nos
últimos meses, propositalmente, Broma passou tanto tempo em conversas telefônicas
com os responsáveis pela fábrica de sofás que eles já estavam em tal tom de
amistosidade que traziam para ela em mãos semanalmente as estopas, sem custo.
Logo uma menina de 16 anos tinha
o emprego mecânico de fabricar bolsas e poderia no fim do primeiro mês comprar
a prestações o celular que tanto queria. No fim deste primeiro mês o lucro de
Broma era de um terço dos seus custos.
*
Brócolis refogado na manteiga,
carne moída, ovo mexido com queijo, arroz, macarrão e refrigerante foi o que os
irmãos prepararam para o almoço. A mãe tinha um mercadinho e o pai era um
médico sem residência, ambos chegavam a noite e saiam pela manhã, assim os
irmãos almoçavam sozinhos.
Espetando um brócolis com o garfo
o mais velho falou:
- comprei a HQ da “metamorfose”
- pega lá
O mais velho buscou no quarto e o
mais novo mastigava sem parar e repetitivamente levava as garfadas à boca
enquanto folheava os quadrinhos ao lado do prato.
- onde tu comprou?
- na internet. Usei o cartão da
mãe
- hum... tu sabe que o Gregor Samsa
não é uma barata né?
- Claro que é! O mais velho pegou
a HQ fechou e apontou para a capa, onde tinha uma barata estatelada.
- não. Ele é um inseto. O Kafka
escreveu só “inseto”. Nas várias ilustrações para os quadrinhos que existe eles
precisam ilustrar esse “inseto” e geralmente usam a barata não sei porquê.
- A barata fica na parede e come
as coisas asquerosas que o Gregor Samsa começa a comer depois de
metamorfoseado.
- ainda assim não gosto. Essa
história de que uma imagem vale mais do que mil palavras só faz sentido nesses
dias de tecnicismo mecânico que vivemos...
- aprimorar a técnica é
fundamental...
- desde que não ofusque a
humanidade, o espontâneo, a abstração... você sabe qual a primeira preocupação
do Samsa quando vira um inseto?
O mais velho pega a historia e
procura a primeira página puxando com o garfo uma porção do ovo que estica o
queijo derretido
- ir trabalhar?
- sim. Ele virou definitivamente
um inseto. Substituível. Facilmente eliminável. Sua cabeça enferrujou. Esse é o
jogo.
O irmão mais velho pensou
enquanto levou o garfo à boca umas três vezes sem parar de mastigar
- você viu que o pai anda
estranho?
- a mãe também
Foguetes estouraram. Os tambores
e a marcha que vinham de longe agora passavam na frente da casa. Pararam de
comer e foram ver
- é o sindicato de novo
O mais novo sentou no puf pra
continuar lendo “Kitchin”.
*
Os loucos todos se animaram com
os foguetes que começaram a estourar mais perto e os tambores que se
aproximavam e a marcha que vinha. Se amontoaram nas janelas gradeadas e olharam
lá pra baixo. Uns babavam, uns esbugalhavam os olhos brancos sem definir se era
ódio ou curiosidade e forçavam os narizes contra as grades da janela. Uns aplaudiam,
uns balbuciavam. Uns andavam em círculos. Uns riam soluçando. Uns riam sem
barulho. Uns choravam. Uns tapavam os ouvidos. Outros nem se mexeram. Outros
continuaram imersos em algo. Alguns viram do outro lado da rua na área da casa
dois rapazes, um maior e um menor, um segurava um tipo de revista e comentava
enquanto o outro ouvia e parecia analisar tudo.
O doutor e os enfermeiros
apareceram todos de branco, talvez para se camuflarem no corredor e nas paredes
e mandaram todos voltarem a fazer o que faziam. Uns então continuaram
caminhando em círculos, outros contando nos dedos, mas o número mais expressivo
deles voltou a picotear pedaços de espuma, obviamente sem propósito nenhum, era
apenas uma maneira de manter suas cabeças ocupadas. Do lado de cada um deles ia
se erguendo uma pequena duna de espuma, conforme eles iam desmanchando colchões
e travesseiro e ursinhos e sofás.
Dizem que o inferno é a eterna
repetição, embora aquela ala do hospício parecesse muito um purgatório, que
dizem também por aí que é o lugar dos indecisos.
*
As marchas do sindicato estavam
começando a se tornar constantes. Fluíam ruas abaixo com bandeiras sincronizadas
e palavras que se repetiam nos megafones. Dos fins de semana eles agora
invadiam a terça-feira. Foguetes saiam
das mãos de alguns de repente com tanta força que pareciam sugados pelo céu. Explodiam
os foguetes constantemente. Muitos foguetes.
Os foguetes eram de doze tiros,
cada caixa tinha doze foguetes e eles conseguiram doze caixas destes foguetes.
O país ia de mal a pior, aos
poucos, como um câncer que está diagnosticado mas não se tem o dinheiro para os
remédios nem para a quimioterapia. Essa gente então reclamava. Barbudos, gente
de boné, mulheres de cabelo solto, curto ou com coques presos em cima da
cabeça. Tentavam despertar a todos para algo que se escondia dentro do escuro
do organismo.
A vida seguia em frente assim
ali. O amanha preocupava enquanto o dia se encerrava. O sol se punha lindo na
cidade plana enquanto mais foguetes estouravam. O vento levava o cheiro suave da
pólvora pra dentro dos banheiros das casas que se repetiam.
EPÍLOGO:
Poucos meses depois da morte da sua
namorada, ele ficou sabendo por meio de algum contato póstumo com a família
dela que as pessoas de um instituto tinham oferecido dinheiro para fazer alguns
testes com ela. A família dela era humilde e simplesmente submeteu, o corpo e a
documentação.
Ele sabia do que se tratava o
instituto e em conversas informais conseguiu dados relevantes de quão grotesca
era a experiência.
Fizeram download dos dados
neurológicos dela para um arquivo de computador.
Acredita-se que as memórias
humanas estão armazenadas em determinados locais do cérebro humano e esta
menina foi uma das muitas pessoas usadas neste tipo de experiência. O objetivo
a seguir era conseguir construir um corpo que se alinhasse ao funcionamento
destes dados de uma vida inteira já vivida: sentimentos, reações, emoções,
linguagem verbal, linguagem corporal, ou seja, tudo que define o humano
enquanto humano orgânico.
Estouravam foguetes na rua
enquanto ele enchia de pregos a cabeça da marreta. Ele não desvirtuou as
marteladas, que continuavam determinadas. Os pregos enormes atravessavam a
marreta de forma que suas pontas ficassem expostas do outro lado. Logo que um
prego atravessava a marreta ele já pegava outro prego do plástico e por um
instante segurava o martelo na boca, ajeitava a ponta do prego no pau e já o
martelava novamente. Isso o levou a um tipo de transe. Os foguetes talvez
tenham se percebido em algum plano de fundo da sua consciência.
“Ela”, ou “aquilo”, o estaria numa
sala de laboratório, de acordo com a simbiose que os dois sempre tiveram desde
que se conheceram ele imaginava “ela” o esperando, mesmo sem saber que ele iria.
Antes se viam sempre com uma paixão fulminante que ia de beijos à transa onde
quer que tivessem um mínimo de esconderijo. Se apertavam, se acariciavam,
fodiam e se juravam à eternidade. Mas depois que ele terminasse aquele porrete
de cabeça de pregos ele invadiria qualquer que seja o espaço que “aquilo” está
e com golpes que o esgotariam as noções transformaria aquilo em farelos. Chega.