ranzinza

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quarta-feira, 8 de maio de 2013

Só bicho é livre



Conversa em lugar alto:

- Eu sei que há coisas ruins de serem ditas, que quando a gente transforma algumas coisas em palavras parece que algo se perdeu. que é impossível de traduzir algumas coisas que são intimas e parecem incapazes de existirem fora da gente, mas olhando essas luzes alaranjadas todas, enfileiradas de postes, ao longo das ruas, tenho a impressão que a cidade é maior que o homem.

- Como assim?

- sei que parece um pensamento juvenil, eu pensava isso quando tinha uns dezessete ou dezoito anos, que um dia todos vão morrer e as cidades vão continuar. mas o que eu penso hoje é que parece que esses buracos dos tijolos estão sempre espiando a rotatividade das gerações que andam por aí, com um ar de superioridade, como se soubessem que durarão mais. Entende?

- acho que sim... você guardou o isqueiro? ... a cidade é a gente por fora...

- pois é. a cidade está sempre se transformando. existe uma lei que diz que alguns metros, não sei quantos, para dentro do seu lote, a partir da rua, não pode ser construído, pois um dia as ruas vão precisar ser aumentadas, porque sempre vem mais gente para as cidades. as cidades se transformam com o processo migratório, talvez assim sejam também as pessoas.

- mas todo mundo nasce dentro de alguma cidade. A população não aumenta apenas porque veio gente de fora, mas as pessoas brotam de dentro também. vêm do útero. não apenas do nordeste ou do rio grande. como as flores dos canteiros ... as cidades não morrem. já pensou se todo mundo literalmente ressuscitasse como acreditam que aconteceu com Jesus?

- é curioso pensar que um ser humano que hoje existe, e há uma semana não existia, têm os mesmos direitos que os outros seres humanos que estão aqui há tanto tempo.

-é a vida. orgânica. são as leis. é assim mesmo.

- sei que é assim. mas é curioso pensar na fragilidade do ser humano, e do que nos suporta como seres humanos. as leis ... Há uma passagem de São Bernardo que diz que um problema grave que temos é que as leis não são feitas por especialistas, advogados, juízes, promotores, etc., mas por políticos.

- não quero falar disso.  

...

- o que vocês comiam na cadeia?

- o que se come fora da cadeia ué. arroz, feijão, carne, purê.

- então tava tranqüilo...

- você passa por vários períodos na cadeia. no começo é tudo remorso, arrependimento e memória. logo você começa a pensar que há tantos anos você não come um cachorro quente, uma batatinha frita, não escuta o som do gelo batendo nas laterais do copo e o barulinho do gás ou o formato da espuma. dá uma certa tristeza de pensar que você teve de ir preso para dar valor pra essas coisas que sempre estiveram tão perto de você e agora existe tanta batatinha para ser frita no mundo, mas tiraram esse direito seu. nesse momento os sonhos do teu estomago num mundo cheio de delícias fazem você querer sair logo da cadeia, e ir trabalhar para reduzir pena. mas logo o tempo deixa de passar e você se torna mais espiritualizado. você já não lembra de tanta coisa e deseja menos ainda. só pensa na tua situação de existir, sem antes nem depois ou qualquer coisa. foi nessa época que comecei a pegar o gosto pela leitura, que eu tava te falando. foi nessa época que começou aquele grupo de leitura na cadeia. eu lia Tabacaria toda santa noite antes de dormir. era mais importante que o cigarro, e assim foi por mais de um ano.   

No terraço do prédio onde estavam, era possível nessa hora da noite escutar os sons agudos que os morcegos emitem para reconhecer o ambiente que estão sobrevoando, e por sorte farejar algum rato ou inseto.

- o que mais você leu na cadeia?

- lá eu aprendi a ler. aprendi o que é ler. não só eu. todo o pessoal do nosso pavilhão que escolheu leitura. começamos a trabalhar mais depois do grupo de leitura, o pavilhão parou de ter os contratempos, era como o delegado chamava as brigas. até o pessoal da cozinha, a gente sabia que estava mais sério. a comida começou a ficar boa. o pessoal cumpria as metas de trabalho em menos tempo e começou a fazer fila no chuveiro. eu não sei te dizer bem certo, mas todo mundo sentia um espírito de coletividade e esperança depois do grupo de leitura.

- outro dia eu ouvi falar que tem um escritor, acho que é inglês, que cada capítulo do livro dele equivale a uma cor ... a que cor você associa a prisão ... ou o teu tempo preso ...

- cinza. sem dúvida.       


domingo, 28 de outubro de 2012

De onde vieram os fantasmas? (alguns diálogos)







Quando Graham Bell foi considerado o inventor do telefone, seu pai esquizofrênico já ouvia vozes, e o acusou de plágio, pois o que o filho teria feito, foi apenas criar uma maquina que imitasse a sua doença e reproduzisse outras vozes. Por isso chamou-se o telefone, por um tempo, de “maquina esquizofrênica”.

Vozes são invisibilidades que se comunicam, e de acordo com o nosso folclore, cultura e inconsciente, invisibilidades que se comunicam são consideradas fantasmas. Também por isso temos aquele sentimento frívolo naquele vento seco que bate nas esquinas.

A nossa vontade Frank’Einstein’iana de combater o nosso medo, nossos limites, nos levou à criação de uma multiplicidade enorme de fantasmas – ou maquinas de vozes, ou meios de comunicação, como preferirem – e hoje temos não só o telefone, como o rádio e todas as outras ansiedades ‘comunicativas’, como as vindas do raio-x: foto, cinema e a TV, respectivamente; temos também os computadores que munem-se da internet. Atualmente há o surgimento de uma nova geração de filhotes híbridos destes nossos fantasmas, com uma gama tão grande de origens e versões, que não valem o espaço do nosso texto.

O fato é que há um ditado por aí que diz que um dia é o da caça e o outro do caçador, no nosso caso infeliz, um dia foi o do criador e o outro está sendo da cria. Nossos fantasmas se voltaram contra nós, e a multiplicidade de fantasmas que criamos, faz agora a voz de cada um de nós ecoar digitalmente dissonante e solitária, simultaneamente pelas sarjetas do mundo. É nossa agora a voz sem matéria, considerada fantasma.

São tantas as tecnologias que temos que acompanhar, tantas as vozes que nos perturbam, que sem tempo para pensar, nos tornamos vítimas das nossas crias. Nossas máquinas esquizofrênicas, maquinas de vozes, nossos fantasmas, transformaram nós em fantasmas. Somos nós agora os invisíveis que se comunicam. Mas esse retrocesso é ainda pior: de tão escravos, estamos apenas uivando.

domingo, 23 de setembro de 2012

Sobre a doença da nona


Dois erros não fazem um acerto, mas é incrível a frase da bíblia que diz que “deus escreve certo por linhas tortas”, afinal, a doença da minha avó me fez perceber a quão boa ela é.


Moramos longe, mais de cem quilômetros da casa dela, e certa tarde quando meu irmão chegou lá, foi recebido com um abraço caloroso atípico dessas velhas polonesas daqui. Um beijo no rosto, e considerações sobre como ele era bonito. Alguns agradecimentos foram despertados em meu irmão. Quando num sopro leviano, desses que arrepiam cada palmo de pele - uma tormenta no âmago do indivíduo - a nona perguntou, com o mesmo sorriso de antes, o mesmo olho redondo e claro que parece ter dado a volta ao mundo e retornado à infância, sem mudar a expressão: “mas quem é você?”

A bíblia fala muito sobre o inferno.

Alzheimer é a capital do inferno.

Talvez por isso as crianças choram quando nascem, por não possuírem memória. O inferno não é os outros, o inferno é não saber quem são os outros. O inferno é existir, debilitado, vivo, e não saber do antes, dos filhos, dos pais, de você. Não saber mais ver as horas no relógio.

Eu nunca gostei da minha avó, mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, e dois erros não fazem um acerto, então isso não faz de mim uma pessoa má a partir desse momento que percebo que ela é uma pessoa boa. Ela não é uma pessoa boa por ter Alzheimer, ela é uma pessoa boa por depois do Alzheimer ter apagado toda a sua vida, ter restado a ela um abraço e um beijo no rosto do meu irmão, seu neto, sem saber quem ele era, e sem lembrar que a cor dos olhos dele eram a cor dos olhos dela.

Depois de oitenta e nove anos de roça, isso me leva a pensar, de novo, que talvez sejamos mesmo bons selvagens. E me leva a querer, de novo, quebrar tudo ao meu redor quando ouço que “tempo é dinheiro”. Meu sangue sobe. O tempo é o tecido da vida.

Não se confecciona a vida, se confecciona na vida. A vida não é a roupa, a roupa faz parte da vida. Aliás, a maioria das coisas que constituem a vida, hoje, se vendem em caixinhas, mas não existe uma caixa grande o suficiente para se colocar a vida inteira, talvez por isso chamem o caixão de caixão.

A morte é Símbolo, como é o amor. O abraço e o beijo da nona.





PS: nos últimos anos criei o hábito de escrever, escrevi isso pensando na senhora, e achei conveniente lhe mandar. Aliás, certo dia estraguei suas flores com minha bola, queimei seu chuveiro, roubei seu dinheiro e lhe xinguei. Agora quero que me desculpe.





Ass: o único dos seus 17 netos sem seus olhos azuis.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Caixão em inglês é "Coffin"



O aluno da primeira carteira, sentado na minha frente, levantou num sobressalto e roubou o boné de outro, foi correspondido com um chute no peito e respondeu com um soco no nariz, com o boné roubado e ao pingar duas gotas de sangue do seu nariz, sua vítima desferiu uns três ou quatro socos determinados antes que eu o agarrasse e o mandasse à pedagoga.

As zeladoras limpavam, com um pano velho-mole-molhado o sangue do chão, quando bateu o sinal e eu fugi dessa sexta para a quinta série.

Dos dentes ferventes em murros verbais tentando controlar os ânimos em alta voltagem, dos trinta e poucos pré- adolescentes no início da terceira aula, nada os disciplinava, eles nunca usariam a língua inglesa em suas, provavelmente curtas, vidas. A correria por entre as carteiras era incessante, e eu me sentia um professor-palhaço-invisível querendo os ensinar. Ocorreram-me mais berros e palavrões para suas costas suadas recostarem nas devidas cadeiras.

O fato é que eles são marginais, desgraçados, os tamancos das meninas tem barro, todos conversam sem hesitação sobre maconha, e no mapa da cidade o bairro não tem ligação com o perímetro urbano, mas o silencio deles era uma utopia e uns bate-bocas estouravam sorrateiros, até o Jefferson e a Lidiane trocarem hálitos fedidos cheios de pudor:

- Sua piolhenta de cabelo embaraçado, vai tomar banho no rio sua encardida!
Como uma cadela de corrente curta demais para a sua raiva, a Lidiane devolveu:

- Piolhenta era tua irmã!

Num empurrão, se livrando da sua carteira escolar, Jefferson atravessou a sala determinado como um tiro, e suas mãos foram a coleira que a Lidiane não tinha, a sufocou, a grudou contra a parede e ela entendeu que não deveria falar da irmã dele, pois a raiva das mãos do menino na sua garganta não a deixavam chorar, ele arremessou no chão os olhos molhados dela, e n’outro sobressalto ela se levantou aos prantos com a mão já na alça da mochila, aos gritos foi embora, cortou o corredor, reta, sem rumo.

Do silencio minha autoridade se fez, perguntei, de cima para baixo, ao Jefferson:

- Aonde já se viu bater em uma menina? Você está louco?
Ele ofegava, os contornos daqueles olhos eram mais que raiva.

-A irmã dele morreu ontem.

Disse o Lucas, num dos meus ao redores de alunos. Como eles são cheios de graça, eu duvidei.

- É sério?

- Sim, professor!

As outras faces infantis e penosas consentiram, por via de dúvidas, interpelei o Jefferson:

- É verdade?

Recebi como um soco, um cuspe, um tapa, qualquer tipo de ferida que não cabe em um único ser:

- Vai perguntar pra ela lá no caixão!

Eu senti muito... Muito.

Me virei para o quadro e continuei passando o texto sobre Marine Parks, que havia começado na aula anterior.

O Lucas gostava, ou precisava, cortar o silêncio e era sempre contundente:

- Ela morreu de bicha professor.

- O quê?

- Sim, ela tinha quatro anos.

No intervalo, os ânimos dos professores estavam em alta voltagem, e o meu café preto estava redondo na xícara.

O pai do Jefferson é cego, seu irmão, o Daneil, que também tem um moicano, estuda na outra quinta serie e sempre que a pedagoga me fala que ele tem perfil de psicótico, eu lembro da baba seca ao redor da boca dele me contando da fome, do envolvimento com crack e de como deu voltas pra conseguir me dizer que o chão da sua casa era de terra batida.

- Olha a cara de desânimo do professor de inglês – Falou a de matemática

- Eu soube que a irmã do Jefferson e do Daneil morreu ontem – Foi o que tive como resposta

O silencio na sala dos professores obrigou a pedagoga á relatar:

- Sim – Arrumando a armação old-fashioned dos óculos – Ela tinha vermes e eles subiram pra cabeça, mataram a menina afogada, e quando ela morreu, isso quem me falou foi a mãe dos meninos, quando ela morreu os vermes começaram a sair pela orelha, pela boca e pelo nariz, quando chegaram do culto ela estava morta e o travesseiro cheio de vermes, eles não tinham como levar a criança no médico, só depois de morta. Tiraram um quilo de vermes da barriga dela.

Os lanches comidos por todos os professores, sem dúvida se mexeram, e entre todos os comentários que não ressuscitaram nenhuma criatura, bateu o sinal.

A professora de artes, certa vez me falou para eu não me envolver com a realidade deles, e tentando driblar o abismo da frente do meu nariz eu falei pra mim mesmo:

- Caixão em inglês é coffin.






segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A máquina universal (do heliocentrismo ao egocentrismo)

O papel do intelectual é ingerir o mundo e devolvê-lo ao próprio mundo com uma porção a mais de razão. Dissecar os seres, explicar os fenômenos, desmantelar os átomos, analisar as correntes, justificar os fatos, etc. Mas eu vejo, e é muito difícil não ver, o retorno da segregação racial, o inferno nas relações humanas, o pandemônio civil, o regramento da liberdade, o desrespeito do estado, a violência, a fome, a miséria espiritual em todas as regiões, etc. O que me leva a questionar o valor dos intelectuais dos tempos pré-modernos. 

 Do heliocentrismo ao egocentrismo foi uma jornada complexa, de difícil exposição breve, mas caminhamos do sol como centro do universo até aqui, onde o nosso âmago – o eu mais intimo - é o centro do universo. Hoje, quando não acariciados por uma parcela representativa de pessoas, temos uma tendência a nos tornarmos depressivos, infelizes, doentes, cancerígenos e coléricos: a solitude traz irremediavelmente a solidão; ninguém consegue se suportar, estar sozinho é o demônio da nossa educação. Somos formados com o intuito de que sejamos destaque, as pessoas que nos ampararam e sustentaram, desejam muito que sejamos melhores que o vizinho. Precisamos nos comparar constantemente – compra-se muito, como forma de poder, para se comparar – e enquanto nos vemos fora dos eixos desses objetivos que acabam se tornando nossos por determinação, nos vemos fora de órbita.

Nossos sonhos não são nossos sonhos, e somos perseguidos se não sonharmos o que querem que sonhemos. Tomamos como nossos esses sonhos coletivos, por medo de não ter com o que sonhar, ou sonhar algo paradoxal á essa maquina universal dos sonhos, cuja manutenção é feita pelo estado, sob a constante vigilância da polícia. Assim é que se dão nossos objetivos, nossa consciência, nossa busca. Ingerimos os espasmos dessa máquina universal e somos educados a amar isso que ingerimos como se fosse exclusividade nossa, pessoal, como se fossemos personalidades. Mas somos apenas um dos vizinhos dos vizinhos.

 Temos cinco sentidos para perceber esse universo, esses sentidos são comuns a todos nós, o que torna o nosso consciente coletivo, a nossa imaginação coletiva, dando vazão às fábulas, lendas, par lendas e mitos; o que eu quero aqui, é representar que das muitas opções que tínhamos á seguir dessa saga do heliocentrismo ao egocentrismo, seguimos cegos apenas o da razão, da ciência, do conforto físico em detrimento do conforto espiritual, o que nos trouxe ao centro desse pandemônio atual e me faz questionar o papel dos intelectuais pré-modernos.

 Algumas pessoas pareceram possuir algum sentido além dos cinco que constituem a razão, essas pessoas foram de encontro ao embalo da máquina universal. São os artistas, eles carregam um histórico de marginalização, desvalorização e repressão. Afinal, em termos gerais, nós temos muitas dificuldades para conceber muitas das formas de abstração e compreender outras formas de realidade, pois somos nós a máquina universal, oprimidos, oprimindo os que não se sentem oprimidos como nós, os ridicularizando e excluindo. 

O papel do artista é ingerir o mundo e devolvê-lo ao próprio mundo com uma porção á mais de sentimento, de abstração, de possibilidades e espírito, ampliar as sensações pela manipulação do real e dessa forma se aproximar de algo além do suporte dos nossos poucos sentidos. A vala cavada pra separar nós de nós mesmos, se deu pela escolha da lógica em detrimento da arte na construção dessa maquina universal que nos transportou do heliocentrismo ao egocentrismo. 


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Nós comemos leões


(Escreve-se na fome)





Somos raquíticos caçadores de leões nada robustos como os do cinema, suas peles e ossos fazem da sua selvageria, violência, da elegância, cólera, e as vacinas com que os picaram na infância, fizeram dos felinos, reis das selvas, epiléticos; nós, raquíticos, porém não ainda ranzinzas, pisamos fino de sola batida e jeans amalgamado de sol, nas suas colas, a espreita fez das nossas vidas silêncio... A caça vara a noite num jogo que não termina, se joga.

Naja nenhuma á de saber do veneno que a fome incita no homem, e pobres são esses leões banguelas de baba grossa, que não cercam nenhum de seus mal tratores, pois apesar de frágeis, sua lisura é de tirar o chapéu com as duas mãos e assistir em silêncio o espetáculo da fome.

Dinheiro nenhum á de reanimar as costelas desajeitadas nos caixões que recheiam os túmulos, tampouco o sono dos filhotes vai deixar de ser um perigo enquanto só o feijão não nos alimentar; cem anos de podridão não deram virtudes a nenhuma família, seja da Colômbia, ou sua prima, Bélgica.

domingo, 11 de setembro de 2011

Algumas linhas sobre a felicidade





Meus pés e tornozelos têm que ser ágeis, as canelas decididas, os joelhos flexíveis, e as coxas com os fêmures, resistentes, pois acima do meu quadril, que por sua vez têm que ser fiel, vem meu peito, tórax, ou como preferirem, para dar um dos suportes á minha cabeça.




Eu tenho que ser confiante, preciso ser leal, diferir os sentidos das palavras, a minha reflexão á dos espelhos, preciso refletir, aprender, interligar os conhecimentos, criar, sorrir na angustia quando a situação for formal, separar a sociedade por camadas como uma cebola e lidar com as mazelas, no fim acabo me simplificando, me olhando como um computador, descentralizando meu sentimento para o coração, já que computador ainda não tem sentimento nem coração, atribuo um ao outro em mim (1+1=2), ainda tenho que tentar acreditar que o formato desse órgão que pulsa agora nuns oitenta batimentos por minuto dentro de mim, tem o mesmo formato das almofadinhas que temos que comprar nos dias dos namorados, escritas “I love you”, além de me vacinar contra os inúmeros tipos possíveis de vírus, eu preciso saber o que são todos os impostos que descontam na minha folha de pagamento, limpar o que o meu cachorro faz pelos cantos da casa, e ainda dar um nome carinhoso pra ele e decorar de seis em seis meses um punhado de novos nomes de alunos das mais variadas aparências. Assim como de manhã tenho que jogar as colheres de café no coador, sem tempo para escrever o que penso, nem sempre quando acabo o dia sem voz e quase sem mais nervos nos braços ou no cérebro, posso beijar a menina que eu amo. Às vezes sim. Às vezes não.


Tudo embaixo dos meus pés corre, tudo na frente do meu nariz morre, e esse sufoco de um, que é o sufoco de todos, trouxe das guerras e apedrejamentos esse combinado de conceitos que eu preciso assimilar para poder ser digno, e com sorte, feliz.