ranzinza

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terça-feira, 29 de setembro de 2015

O GROOVE DO VERDADEIRO ASSASSINO




Um, dois, três, quatro tiros em intervalos iguais entre si. Os ecos acontecem afinados e a onda de algo que se desmancha vai para a esquina... A multidão alvoroçada dispersa e abandona os quatro cadáveres ao redor do dono do mundo daquele instante. Carlos Alberto coloca a pistola quente na cinta e vai embora de carro tranquilo.

A mesma população miserável e vítima de uma ordem social escrotamente injusta a quem só resta acreditar que há alguma justiça universal, “aqui se faz, aqui se paga”, acredita também na polícia. Mas Carlos Alberto comeu e tomou cerveja normalmente em todos os dias seguintes da sua vida, viu televisão, apostou na rinha de galo, depositou o dinheiro da pensão, etc., etc., etc.

O mundo é como uma roldana sem azeite e a mente como o fluxo do transito de Nova Deli dentro de uma caveira. Olhos? As vezes é melhor não tê-los, principalmente se você é filho do hemisfério sul do mundo, mas não sejamos injustos: um país bonito não evita todo o sofrimento do coração humano.

Um, dois, três, quatro tiros em intervalos iguais entre si. O Goiás garantiu a vaga para a pré-libertadores esta noite, Carlos Alberto voltou da janela e colocou a pistola quente em cima da mesa da cozinha. Algo no coração tropical dele sorri e na sua cabeça esse sorriso é banguela. O sorriso que deveria dispersar nos instantes seguintes é fomentado nos dias seguintes pelos bate papos esportivos de jornalistas que ninguém sabe quem são, de onde vêm ou pra onde vão.

Os dias se intercalam em intervalos iguais entre si. E quando o Goiás perdeu a pré-libertadores para o Pachuca do México muita gente já era caveira e muito verme já tinha virado borboleta. As árvores ainda eram plantinhas, mas o som da vida seria perpetuado não mais pelos gemidos da gente mas o chilro das folhas das árvores que os mortos adubam.


No fim só há música.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Kikuji Kawada, Sunspot And A Helicopter, Tokyo, 1990

O SELVAGEM MORTO

Veja este índio escalpelado

Sendo puxado das profundezas do lago

Gelados

Puxado pela corda do seu pescoço

Olhos bem abertos sem expressão

Brancos

A relva e a neblina são tão ele quanto o descaso

A caveira do macaco e o bebê retardado

Quietos

As máscaras bestiais que falam as línguas cristãs

Fazem a história numa dança de vultos em torno do fogo

Ensopados

Aqueles que escreveram o mundo com rosários nas mãos

Eliminaram estes que têm o sangue no mesmo curso da seiva

Mortos


terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Roupas


Como a máscara dos que dormem de máscara
E na manhã seguinte descobrem que nunca mais a desgrudarão do rosto
As roupas são o tecido tênue que divide o homem e o mundo
O real e o fantástico
Então não se esqueçam que de tão pegadas ao corpo
As roupas confundem-se com nós
Mas são só coisas
As roupas são a pele da ética
Elas são o limite entre o homem em paz e o mundo cão
A coisa limítrofe entre duas verdades
As roupas são o sinal mais luminoso que diz que o homem precisa da ficção
As roupas são a primeira escolha diária de cada homem
E também a primeira expressão
As roupas são a dica de que não há como fugir das abstrações
As roupas são de alguma forma a natureza de todas as loucuras
As roupas podem gritar mais do que muitos quadros
Elas apontam o dedo em tom de inquisição
Seja pra quem as veste ou as repara
As roupas confeccionam ideias absurdas
E afirmam como verdade todo absurdo
São a origem das fofocas?
As roupas são o fio fino e transparente que junta e divide a verdade da mentira
Como o rio negro que se encontra  e se divide de outro rio
As roupas protegem da lama
Outras roupas protegem do sangue do paciente
Outras roupas identificam o garçom
Esse tipo de roupa divide a gente toda do mundo como pedaços uniformes de uma pizza
Os outros tipos de roupa podem autenticar indivíduos
Mas estas também muito facilmente se tornam cópias das cópias das cópias
E logo a pizza vira uma bagunça uniforme mais uma vez
Onde estão todos sendo woompa loompas achando que são Srs. Wonka
 As roupas são a extensão sem fronteiras do homem
As roupas são o reflexo que o homem precisa criar de si mesmo
Para que constitua sua identidade
As roupas são o próprio personagem do homem e não o seu figurino
As roupas talvez sejam bloqueadoras de sonhos e ferramentas dos pesadelos
Mas são sem dúvida o porquê do tesão
E da riqueza da indústria pornô
As roupas desenham o mundo
Mas quem as desenha só desenha cifras de bucks
A eletricidade das multidões têm livre arbítrio e poder
Poder de um sobre o outro e do outro sobre um
E ninguém das multidões percebe as passarelas das Fashion Weeks
Cada um de todos os homens do mundo quer existir para cada um de todos os homens do mundo
E por isso gasta o dinheiro do seu trabalho em roupas plurais
E sai com elas de casa para o universo
E se o homem não quer mais escolher suas roupas ele já morreu
E sabe disso
E se o homem julga outro homem como gay por escolher bem sua roupa
Esse homem é brasileiro
E se no Brasil um homem escolher muito bem sua roupa ele é gay
E se na França um homem não escolher bem sua roupa ninguém fala com ele
Isso eu inventei
Há passagens na bíblia sobre as roupas do céu ou do inferno?
O Chico Xavier falou algo?
As roupas são a maior gaiola terrestre
As roupas são a grande chave social
Há maldade maior do que ensinar aos índios o que é pecado?
Jogaram-lhes roupas na cara e borraram suas pinturas
As roupas transformam qualquer homem em tudo o que ele quiser ser além dele mesmo
E ele pode ser tudo o que quiser desde que as compre
Ou tenha o direito de as usar
Como um padre ou um juiz
De futebol
Mas assim as roupas também ensinam aos sábios
Que somos apenas uma coisa
E por meio delas estamos o quanto desejarmos
Veja
Um homem pode estar padre desde que vista a batina
Pois amanhã pode estar juiz desde que carregue um apito e cartões
Mas se as roupas caíssem deste homem para sempre?
Ele estaria condenado a ser
Mas o fato é que as roupas caem e sobem
No corpo ou no Cabide
Abrem e se amarram
Por trás ou pela frente
Há ainda os ridículos que colocam roupas em seus cachorros
Haja perversão!
Mas as roupas sempre estarão dizendo em silêncio tudo o que precisa ser dito
Nada
E ao dizerem isso dizem o essencial
Sejamos livres.





terça-feira, 25 de novembro de 2014

AS AUSÊNCIAS




Ele matou ela pra poder se matar em paz. Não há mistério nisso. As coisas são como são.

O mistério está no giroflex. O mistério está no camburão do carro do IML sendo preenchido com os cadáveres. O mistério está, na verdade, em cada espectador que precisa ser igualmente preenchido, com mistério.

Ela queria a separação.

Equivalente à verdade do espectador ou o camburão antes de receber as bandejas com os cadáveres, a depressão também é a doença do esvaziamento, o suicídio é uma espécie de casamento nesse caso, uma retirada. O suicidassassino sofria da depressão por conta da sua mulher, que acabou morrendo junto com ele, então ela é uma suicida de alguma forma.

Se você acha idiota morrer por amor leia este trecho: é como se ela tivesse jogado ele na piscina e eles tivessem morrido de pneumonia, ela por contágio da doença dele.

Se você acha casual morrer por amor: é como se tivessem morrido por conta da AIDS.

No Banheiro, ele deu um tiro na testa dela e outro na própria boca.

Por que a polícia deixa os giroflex ligados quando os corpos já foram levados e os curiosos permanecem no local? Para dar a carniça às hienas, claro.

O policial desligou o giroflex, saiu do quintal de ré, manobrou no meio da rua e foi embora. As dezenas de pessoas se dispersaram em sincronia. Alguém trancou a porta da frente da casa e se perdeu na esquina.

A casa permaneceu, com as luzes apagadas.

A Ausência é a verdade, toda presença é passageira.  

Nas cidades pequenas há muita confiança entre as pessoas, e na manhã seguinte o pintor desavisado foi para pintar o portãozinho da casa, não encontrou ninguém mas fez o serviço mesmo assim, crendo que passaria qualquer outro dia para receber o dinheiro. Era um senhor calmo, pintou daquele “azul bem clarinho que lembra o mar”, como ela mesmo havia dito pra ele que queria a cor no dia anterior. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Houve certa vez um deus



Herança da química original
Uma vez existiu um deus
Cabeçudo e capcioso
Com um machadinho em cada mão
Assassinava, assassinava
Um por um seus inimigos
Parecia o cão.

Reescreveu a historia
Se fez único e central
Gozou no universo
Logrou os caixas de todos os núcleos de tempo e espaço inalcançáveis por nós – diga-se de passagem: restos miseráveis
Apertou a corda da capa no pescoço
E engatinhou à perfeição
Sem culpa, sem cor, sem matéria
Sem a porra de um animal de estimação
Houve uma vez um deus – lugar comum chamá-lo de menino brincalhão
Não era deus de ninguém porque não era
Só se concebia
Quando sequer o granito existia.

Praias inexplicavelmente lindas tinhas ondas já quebrantes antes mesmo da ideia de homem soprar no mundo
Mas esse deus já fazia buracos e cortava, cortava todas as concepções
Com a aspereza de ser absoluto
Nítido
Livre
Selvagem
Verdade
Pureza
Vida

Houve certa vez um deus
Anterior ao aramaico
Indefinível em qualquer idioma

Qualquer poesia


segunda-feira, 29 de setembro de 2014

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Judas


Eu costumo levantar cedinho nos sábados e ir correr na pista de atletismo na saída da cidade, algumas vezes faço isso nas sextas à noite também. Gosto de estar sozinho naquele enorme espaço aberto enquanto corro, e raramente há alguém lá nestes horários.

As ruas estavam completamente molhadas e haviam poças no meio dos terrenos e construções inacabadas naquela manhã. Ao chegar na pista, ao sair do carro, vi um filhote branco de pitbull amarrado à tela que cerca o local. Ele estava ensopado, em pé na grama molhada e suas pernas tremiam, parecia exausto e em intervalos simétricos de cinco segundos, com o olhar perdido, dava um latido rouco que ecoava por todo o lugar. Imaginei que ele tivesse sido esquecido ali na noite anterior, e como carrego um certo trauma de cachorros desde a infância, passei reto e receoso ao lado deste e entrei no portão de acesso à pista.

O trajeto tem oito raias e um total de 400 metros, no meio do circuito há um enorme gramado com duas traves móveis de futebol, amarelas e sem redes. No outro extremo da entrada ficam as armações de ferro e bancos de concreto destinados aos alongamentos. Como sempre, naquela manhã eu caminhei esta meia volta, do portão aos ferros, em total silencio, olhando para os meus tênis, a cidade longe, as árvores, os morros e o céu, como se estivesse tentando sentir o que este sábado tinha a oferecer.

Eu ouvia as latidas pausadas miseráveis do pitbull enquanto caminhava, percebi que ia me afastando delas, mas mesmo do outro lado, nos ferros, ainda daria para escutá-los e aquela rouquidão abandonada e triste me acompanharia ritmada a manhã inteira. Eu buscava o transe que toma conta do corpo e dos pensamentos quando se corre em silêncio e sozinho, mas isso é coisa muito delicada e qualquer detalhe me tomava de assalto, naquela manhã seria a situação do cão e a melodia do seu latido.

Mas ao chegar nos ferros vi alguém caído. Era um rosto muito familiar embora de alguém que eu não lembrava, não conhecia, tive um tipo de vertigem dentro do peito... fiquei confuso; também porque levei um breve susto, pensei que o sujeito pudesse estar bêbado e dormindo mas intuitivamente percebi que não era o caso – agora percebo os detalhes que li irracionalmente: ele estava caído de forma que chovia no seu rosto, o que o faria acordar caso estivesse bêbado, pois senti que estava ali há muitas horas devido ao quanto estava molhado, branco e com os olhos fundos; por fim ele estava de shorts de corrida, meias brancas e tênis da olímpicos -, percebi portanto que se tratava de um cadáver da noite anterior, e como tudo o que eu não precisava na minha vida naqueles dias, que seguiam o fim do meu casamento de nove anos, era envolvimento com um cadáver, com um crime, com o que quer que seja ... dei meia volta logo que me deparei com a cena, caminhei os mesmos duzentos metros no sentido contrário e um pouco mais rápido do que antes, dei uma olhada rápida no cachorro até ele dar a próxima latida, entrei no meu carro e saí dali.

De acordo com o laudo a polícia foi chamada para o local às dez e quinze da manhã, ao vasculhar o entorno encontraram uma garrafa de água junto com o celular e a chave da casa do sujeito em um canto próximo ao corpo. A ultima ligação feita daquele aparelho era para uma mulher chamada Giovana, que deu o endereço do apartamento do indivíduo e disse que seu nome era Pedro. No apartamento havia um revolver calibre 38 registrado em seu nome, além de evidencias que alguém esteve ali em menos de vinte e quatro horas: louça úmida no escorredor, um par de botas com barro semi-molhado frente à porta e do lado de uma mesinha branca onde haviam cigarros, relaxantes musculares, cartelas de paracetamol, omeprazol e benegrip, além da pequena chave do cadeado da bicicleta que estava no estacionamento, com a graxa da correia ainda úmida, e uma lista de compras onde estavam listados carne, cerveja, molho, cebolas, pasta de dente e camisinha. Também haviam indícios que o pitbull pertencia ao indivíduo: ração e jornais pelos cantos.

Fotos de vários ângulos dos cômodos do apartamento, fotos da bicicleta, da lista de compras, e a própria lista de compras estão nos laudos, onde está escrito também que às 11h40 da manhã foi encontrado pulso no indivíduo que teve que ser encaminhado à UTI, onde permaneceu do dia 08/08 ao dia 14/08.

Hoje é dia 16/08, o que quer dizer que há dois dias estou no quarto do hospital, com o braço direito paralisado, sendo sedado regularmente. Eu não lembro de nada. O médico está sentado aqui do meu lado, e me entregou o laudo com as descrições dos fatos e as imagens da casa como tentativa de recobrir minha memória. Ele me disse ao entregar o laudo que sofri a descarga elétrica de um raio na sexta a noite, quando fazia alongamentos nos ferros da pista de atletismo, que é um lugar propicio à situação por ser um lugar aberto além de ter as tais barras.

Mas eu não lembro de mim. Não sei quem sou nem onde estou ou pra onde vou. Tudo o que lembro eu vos disse.

Alias, há menos de um minuto uma mulher maravilhosa entrou pela porta, com o cabelo negro parcialmente preso em cima, e a franja para baixo, com o rosto de uma harmonia exuberante que me causou uma vertigem forte na alma quando a vi, como se dentro de mim houvesse raízes profundas onde fluxos contínuos de calor nascessem. Ela me viu, começou a chorar e me abraçou, e eu estou agora aqui com o queixo em seus ombros, vendo o sol entrar pela janela e ser fatiado pela persiana entreaberta.

A única coisa que eu sei é que a amo, e aliás, acho que o filhote de pitbull eu havia adotado dois dias antes e o chamaria de Judas.