Pretendo
escrever alguns episódios autobiográficos. Diga-se então que sempre fui
perdidamente sentimental e magnificamente tímido. Sempre fui uma bomba
silenciosa e nunca me remediei. Perceba-se os relatos de quem foi uma criança
observadora que depois de levar uma tapa na cara do irmão, que disse “você não
tem boca pra nada”, começou a querer se expressar.
*
Ampére
é no Paraná. Oscila entre 21 e 17 mil habitantes há décadas. Aos pés da igreja
matriz se estende a praça central, daí deságuam as ruas da cidade abaixo. Nas
costas da igreja não deságua nada, lá está o banhado – nome real -, bairro
fundo onde moram os pobres mais pobres da cidade.
De
Curitiba fui morar em Ampére, estive lá dos 7 ou 8 anos até os 14. Algo entre
1996 e 2002. Na minha cabeça essa cidade é muito maior do que é de verdade, (a)
porque era pequenino nos anos que morei lá, cresci bastante depois de ir embora,
e (b) porque nutro uma raiva grande por essa cidade – não vou pontuar essa
raiva em um texto apenas.
Hoje
em dia sou adepto da yoga e da meditação, mesmo assim não pretendo me desfazer
dessa raiva que cultivo de Ampére, porque é uma raiva verdadeira, honesta, de
coração. Eu odeio aquela cidade com vigor, a tenho por inimiga. Talvez isso me
faça alongar minha ideia de que todo homem deve ter inimigos à ideia de que
todo homem que se preza deve ter ódio de algum lugar do seu passado. Embora
minha avó plantasse morangos – em cima da foça da sua casa – eu não cresci em
um pomar perfumado, cresci na sujeira. Ampére é suja.
São
as pessoas que fazem a cidade, então quando digo que odeio a cidade estou
dizendo que odeio o que a ela é moralmente. Odeio aquelas poucas famílias que
se tratam orgulhosamente por seus sobrenomes italianados e planejaram a cidade
e estabeleceram que ali há um núcleo familiar, que eles dominam. Eu sempre fui
ali um forasteirozinho, um pobre, um alguém sem sobrenome, um piá filho de uma
pobre e viúva irmã dos donos do restaurante, um menino orelhudo que dava sinais
de rebeldia e tinha que apanhar – e ser trancafiado no seminário, história para
outro momento. Eu nunca vou perdoar essas pessoas.
Sou
feliz por não carregar o sobrenome Pluscinski na identidade, pois é o sobrenome
da família amperense da minha mãe, família que entre outras ajudou a fazer de
Ampére essa Salém que é. Que planejou a vida de vinte mil cidadãos ao redor de
uma igreja feia.
Hoje
tenho ódio de muitos tipos de gente, e quase todas são frutos da minha experiência
em Ampére – como aqueles polacos que bebem e ficam com a bochecha vermelha,
fedorentos e machões.
Mas
tenho um carinho muitíssimo grande por inúmeras pessoas que moram em Ampére até
hoje. Amigos, incríveis, que me ensinaram a pensar e tudo o que sei hoje é
resultado daquilo para o que fui acordado com essas pessoas; estarão pra sempre
no meu coração, embora nosso contato hoje seja pequeno.
*
A
choupana, restaurante de um dos meus tios, onde minha mãe foi trabalhar assim
que chegamos à cidade, era em uma das esquinas da igreja, em frente à praça.
Esse mesmo tio tinha uma loja de pneus nessa época. A loja era sempre muito
ociosa e eu e meus dois primos ficávamos por lá quase todo o tempo, nos
escondendo dentro dos pneus novinhos com cheiro de pneus novinhos – até hoje o
cheiro de pneu novo me transporta àquele tempo, troquei os pneus do meu carro
há três semanas - e atendíamos o telefone que esporadicamente tocava. As lojas
dos lados eram igualmente ociosas e nós frequentávamos em clima de camaradagem
infantil esses espaços todos. Passavam poucos carros nas ruas.
Um
negócio ali do lado era um estúdio de fotografia. Eu não lembro quem era o
sujeito, eu não lembro como era a frente do estúdio, apenas lembro de estar em
algum momento único da minha infância dentro de uma sala amplamente escura em
que o sujeito molhava, o que hoje sei que são, filmes de fotos em um recipiente
com algum liquido raso, analisava os filmes das fotos no ar em uma luz
estranhamente vermelha e as pendurava com um prendedor de roupas em um varal de
fotos.
Tudo
era muito vulto. E eu não sabia o que estava acontecendo, mas estava ali em
silêncio em um canto nesse instante estranho da vida.
Hoje
eu explicaria como se desenvolveu o raio-x, a fotografia, como a fotografia deu
vasão ao cinema e como o cinema transformou toda a ideologia da humanidade no
século XX, seria capaz de fazer vínculos que justificam o comércio ocioso
terceiro-mundista e até entender parte da psique daquele cara baseado em poucas
palavras que ele me dissesse enquanto pegava delicadamente aquela foto e a
pendurava naquele varal. Mas naquele momento eu tinha sete anos apenas e meu
coração ainda não cabia no mundo.
tenho saudade de quem você é.
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=Q889itJ4Lr8
ResponderExcluir