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sábado, 25 de agosto de 2018

Socialismo, desajuste e liberdade


Eu gosto de albergues. Talvez sejam o espaço mais socialista dentro do capitalismo. Você lava a tua louça, você compartilha o chuveiro, compartilha o espaço do quarto, compartilha a mesa do café da manhã, compartilha a geladeira, é responsável pela tua janta, pode deixar na geladeira como doação o que não vai comer e pode comer as comidas que estão lá sem dono, porque são doações. Inevitavelmente (o que é bom pra mim que tenho viajado sozinho) você compartilha experiências, conhece pessoas.

Foi numa manhã antes de eu embarcar para Cuba, em um albergue em São Paulo, no bairro de Pinheiros, mais especificamente, atrás do largo da batata, na estação Faria Lima, linha amarela do metrô sentido Itaquera antes do Butantã, que compartilhei a mesa do café da manhã com um sujeito de Brasília. Um negro formado em direito que trabalhava de assessor de alguém no congresso e também estava sozinho no albergue, fazendo algo em SP que não me lembro mais. Mas conversávamos sobre política e cerceamento de direitos até que ele me disse que “se você respeita as tradições não existem motivos pra você existir. Se você só perpetua o que teus pais te ensinaram a tua existência é desnecessária”. Eu lembrei de Sartre “o que você fez com aquilo que fizeram de ti” e lembrei de Camus “o homem que não se rebela não existe”.

Eu já havia me questionado sobre aquilo, já estava cansado do velho existencialismo, mas levei em silêncio pra Cuba essa coisa das tradições, do respeito às tradições. Do não existir e só perpetuar. Foi uma experiência curiosa visitar tantos lugares importantes da revolução cubana tendo em mente a importância de revolucionar para existir. Sempre admirei os revolucionários cubanos por mudarem profundamente o seu próprio destino e o destino do povo todo, subjugado por uma sistema cruel.

Viver significa ser livre e ser livre angustia, porque ser livre significa fazer as tuas próprias escolhas, compor o teu próprio destino, e nos angustia fazer escolhas porque elas implicam a recusa do que não escolhemos, e deixar possibilidades pra trás entristece, nós que temos consciência da finitude da vida, e muitas vezes não dormimos tão tranquilamente como os cachorros, que não sabem das coisas (ando dormindo mal). Por isso se diz Cuba Libre, a ilha se desprendeu dos mandos dos EUA e abraçou o seu próprio destino. Fizeram a escolha mais difícil, serem livres. São raros. São como poucos indivíduos no mundo.

Existe a dicotomia de sujeitos que escolhem obedecer e serem passivos e dormirem tranquilos, e os outros (nos quais me encaixo) que se incomodam e querem ser autênticos, e se angustiam porque têm urgência de existir. É o “ser ou não ser, eis a questão”. Porém, também estou cansado dessa pergunta, e ando me questionando sobre: como posso ser autêntico em um mundo onde tudo se aprende? Será que a rebeldia não é um outro aprendizado? Que me ensinaram para que eu critique e deixe as coisas mais sofisticadas? Afinal, o socialismo surgiu como reação ao capitalismo e é antes de tudo uma critica a esse, que por meio dessas criticas se aprimora e nunca deixa de ser capitalismo.
Então a minha pergunta faz eu me voltar contra mim mesmo. Me ensinaram a querer ser livre para assim mudar algo mundo? E mudar algo no mundo para que o mundo continue sendo mundo, só que melhor depois de mim?

Eu acho que ninguém me ensinou nada especificamente. Eu escolhi acreditar em coisas baseado nas minhas afetividades, e para encontrar algum conforto de identidade no mundo criei noções de certo e errado. É claro que há muitos pós-modernistas que dizem que a verdade é cultural, construída, relativa, etc., mas por que eu tenho as minhas angustias vivendo na cultura que me ensinou a pensar? Será que vivo na cultura do desajuste? Se sim, nunca terei a minha liberdade e autonomia? Ainda acredito que não. Existe alguma verdade universal e estamos desajustados. Muita gente sofre e o sofrimento em lugar nenhum é cultura. Houve escravidão e há países (não culturas) que cortam os clitóris das mulheres. A burca é absurda. O estupro é nojento. Minha família errou quando eu não pude entrar na piscina com todos os meus primos na festa da família.
Essa tradição me excluiu e na exclusão fez eu existir. E querendo existir eu durmo mal e tenho olheiras, porque quero ver coisas diferentes.  

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