Leitor, eu escrevo
partindo do pressuposto que você já levou um choque elétrico.
Agora imagine todos
os cabos de um poste, imagine-os conectados ao teu estômago, peito, costas e
cabeça. Se você já levou um choque vai conseguir imaginar a força que esses
cabos terão sobre você quando ligados.
Na realidade esses
cabos não estão em você, mas as forças que você imaginou estão, por cabos
invisíveis como se fossem Bluetooth, Wi-Fi. Essas forças condicionam você a
atravessar a rua no mesmo lugar todos os dias, elas condicionam você a fazer o
café na mesma hora e sempre começar a comer a coxinha pela pontinha ou pela
parte maior, temperar a salada ou não, comer uma banana antes de ir jogar
basquete, deixar o volume do som do carro no 12, etc. Pior: acreditar na
polícia, na democracia, acreditar na ciência e admitir deus como uma invenção.
Pior ainda: amar a tua mãe e o nenezinho que saiu da tua namorada, desconfiar do
preto, do pobre, da mulher, do muçulmano, odiar o diferente e gritar gol. Ainda
pior: não pensar sobre a tua própria morte.
Mas em algum lugar
existe um homem sem a influência dessas energias, eu não o conheço mas sei que
ele existe de acordo com a minha intuição que me faz escrever agora, e ele está
cortando o próprio braço com uma gilete agora em algum lugar do espaço fora
desse quarto.
Sabe aqueles outdoors
eletrônicos enormes de propagandas que acendem à noite e iluminam a cidade cheios
de cores que explodem dos anúncios e refletem nos carros, muros e vidraças? São
o Bluetooth que grudam você no mundo como desejam os monstros da ordem e do
progresso. Luz e depressão. Eletricidade e anemia.
Tem alguma coisa no
teu celular aí do lado, alguma notificação, mas a pessoa está em algum outro
lugar desse labirinto de luzes de Led e eletricidade mental simulando uma
presença dentro do teu smartphone, por isso luz e depressão, eletricidade e
anemia.
Outro dia fui tomar
um café. Na mesa da frente uma menina sozinha deslizava o dedo na tela do
celular enquanto levava a comida até a boca sem ver o que estava comendo, o
café saía da máquina, a conta foi paga com cartão, e eu fiquei cuidando o
semáforo piscando do lado de fora do vidro, como se fosse uma menina bonita
meditando.
Em Meridiano de Sangue, considerado o livro
mais violento do século XX, o Juíz Holden, um dos líderes de um bando de
assassinos de índios, ao fim do livro, fala para o Kid que sabe que o tecido do
coração dele apresenta algum tipo de defeito e por isso ele nunca foi um
subordinado naquele contexto tenebroso de violência, ele demonstra algumas
piedades sutis ao longo da obra. Eu me pergunto se o excesso de conforto e piedade
que as máquinas trazem ao cotidiano da gente não deixa algum tipo de defeito no
tecido do nosso coração... na verdade, nem é mais uma pergunta que me faço, já
é uma resposta que encontrei.
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