ranzinza

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sábado, 22 de fevereiro de 2014

O tempo é dinheiro no mundo dos relógios


Os relógios que até hoje levam a marca Quartz, são assim chamados desde 1927, quando os estadunidenses Warren Marrison e J.W. Horton criaram o relógio de quartzo, material que cria um sinal com uma freqüência mais precisa que os relógios mecânicos produzidos até então. Logo a marca se expandiu e a industria dos relógios – despertadores, relógios de pulso e relógios de parede - foi dominada pela marca.  

Como é razoável que aconteça com qualquer marca em ascensão, a Quartz alcançou os principais mercados para além dos Estados Unidos, implantou novas estruturas para produção em vários países estrangeiros, o que a permitiria entrar no comércio destes países de maneira combativa – não precisando arcar com taxas de importação e exportação –, o que permitiu também que houvessem lojas específicas da Quartz em todo lugar, sem a necessidade de recorrer a joalherias independentes para vender seus relógios.

Essa ascensão da Quartz foi explosiva e logo a sua força era tamanha que os acordos mais variados eram possíveis à marca, que se tornou alvo de interesses dos maiores empresários da maioria dos países em que atuava. Contatos com grandes políticos também começaram a acontecer.

Em 1930 o negócio de relógios decaía e a Quartz, na contramão, iniciava seu crescimento por começar a produzir e vender no mercado brasileiro, um dos primeiros mercados de interesse da marca fora da América do norte, que logo foi procurada por Pardal Antunes Mirella, um parlamentar carioca que propôs à marca algo de uma lisura digna do filme “Acabaram-se os Otários”: uma parceria para a implantação do horário de verão.

Pardal Antunes Mirella escreveria o projeto “Horário de verão” para ser votado no senado, sob o pretexto de “economia de energia elétrica e maior aproveitamento do dia na época do verão”, de forma que os relógios fossem adiantados em uma hora na entrada da estação, e ao fim dela tivessem que ser retrocedidos em uma hora.

A peça chave dessa maracutaia é segredo para todos: os relógios mecânicos todos são produzidos para funcionar apenas no sentido horário, o seu sistema delicado de engrenagens, cordas, parafusos e ponteiros, desestrutura-se caso o relógio seja trabalhado no sentido contrário – sentido anti horário -, o que fez que com o fim do horário de verão, sem informação a respeito do funcionamento dos seus relógios, quase toda a população brasileira voltasse o ponteiro dos seus relógios para uma hora atrás e nos dias seguintes seus relógios parassem de funcionar, o que teve como resultado um crescimento de mais de 200% nas vendas da Quartz no Brasil, nos meses seguintes à implantação do horário de verão anualmente. Desses 200% dos lucros da empresa nesta jogada, 40% eram destinados ao saldo bancário de Pardal Antunes Mirella, como parte do acordo.

Isso era meados de 1931 e foi a grande jogada da história da Quartz, que ano após ano lucrava imensamente com o fim do horário de verão, enquanto a concorrência se desfazia, de onde surgiram os lucros que permitiram à marca se expandir para a Europa.

Como nem tudo são confetes no mundo cão liberal, e porcos chafurdam nos diamantes do porão dos clubes de sinuca dos bacanas, o Brasil sofreu seu primeiro golpe de estado em 1937 e o Sr. Pardal acabou assassinado na surdina pela sua oposição, o partido de Getúlio Vargas, partido comunista, e com isso o horário de verão logo deixou de ser adotado, embora durante os anos da Era Vargas ainda tenha acontecido por algumas vezes esporádicas, afinal, havia uma determinada economia na energia elétrica nos meses desse horário alternativo, mas desta vez sem acordo nenhum com empresários.


Depois de todos os tramites históricos que deram fim à ditadura militar no Brasil - e não nos competem neste texto - em 1985, Tancredo Neves foi eleito presidente da nação, porém morreu misteriosamente antes da sua posse, e a presidência ficou com José Sarney, que entre outras medidas, ainda naquele ano, reestabeleceu de maneira concreta o horário de verão, assim beneficiando, a agora consolidada, marca Quartz e conseguindo uma fonte preciosa de renda pessoal, que o permite até hoje ser fotografado em Acapulco. 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Uma ideia perigosa.


Algumas pessoas tem andado por aí um pouco decepcionadas com o mundo conforme as suas noções das coisas vão se transformando, e são submetidas a uma televisão que sensacionaliza as mortes na Ucrânia, a violência na Venezuela e repete incansavelmente termos como "vândalos", "vandalismo", "violência", "destruição e "crime" quando o assunto é os manifestantes brasileiros.

Acho que essas pessoas deveriam entender essas palavras:

"There's no such thing as life without bloodshed. I think the notion that the species can be improved in some way, that everyone could live in harmony, is a really dangerous idea. Those who are afflicted with this notion are the first ones to give up their souls, their freedom. Your desire that it be that way will enslave you and make your life vacuous."

Algo do tipo "Não existe uma coisa tipo vida sem derramamento de sangue. Eu acho que a noção de que as espécies podem de alguma maneira se desenvolver, de que todo mundo poderia viver em harmonia, é uma ideia realmente perigosa. Aqueles que se afligem com essa ideia, são os primeiros a desistir das suas almas, sua liberdade. Seu desejo de que isso seja dessa maneira vai te escravizar e fazer da tua vida uma coisa vaga."

Essa é uma fala de um dos poucos caras que eu admiro no mundo, o escritor Cormac McCarthy, em uma fala para o NY Times, em 1992. Ele é desses caras míticos: velho que nunca aparece.

Me parece mesmo que essa peste humana que é o jornalismo, como um carrapato ou alguma bactéria hospedeira de câncer, continua se sustentando na noção fantasiosa e romântica, que todo ser humano comum têm, de que a vida deve ser de determinada maneira, que existe certo e errado, o bem e o mal, etc. O que constrói esse zum zum zum desgraçado e maniqueísta do nosso cotidiano.

Há ainda outra frase de um livro desse cara para reforçar minha ideia:

"People were always getting ready for tomorrow. I didn’t believe in that. Tomorrow wasn’t getting ready for them. It didn’t even know they were there." 

ou seja:

"As pessoas sempre estiveram se preparando para o amanhã. Eu não acredito nisso. O amanhã não esteve se preparando para elas. Ele sequer sabia que elas estariam lá".

Acho que quando estivermos prontos para o fatal e, assim, destemer o amanhã, a ignorância e as religiões se desmancharão um pouco.



domingo, 22 de dezembro de 2013

Trecho do livro que ando escrevendo e uma das fotos que andei tirando

 7 horas


“Eu tenho 69 quilos, estou em queda livre há uns 20 segundos e estou a um palmo do chão. Com esses dados você consegue calcular o quanto vou demorar pra virar um monte de sangue e carne e ossos e dentes e pelos e membros e órgãos esparramados como nunca antes, ou uma alma indo para o céu, ou um espírito iniciando sua jornada de purgatório, ou um caixão simbólico, ou um pote de cinzas, ou tudo isso junto, ou nenhuma dessas coisas. O fato é que esses teus cálculos não dirão o quanto me resta de vida, porque eu não morro aqui, só morrerei quando a última pessoa de todas as pessoas do mundo que ouviram falar de mim tiver morrido, serei então o nada absoluto, a morte terá lambido o ultimo resquício de mim, mas até esse sujeito, que eu não imagino quem é e nem conseguirei imaginar, morrer, eu estarei vivendo, como memória. Que é o que somos no fim das contas - no meio das contas também, pois foi pra construir a memória da mulher que trabalhava no almoxarifado, na sala depois da sala da Lúcia, que eu sempre combinei minhas gravatas." 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Marcianos




Eu estava num bar quando divulgaram a imagem de marte tirada pelo robô que os humanos mandaram pra lá. Todos fitavam a tela quando alguém falou:

- Parece uma caceta!

Todos gargalharam. O desenho que o robô fez no chão de marte parecia um pau mesmo, o meu inclusive. Pela quantia de risada ali, todos deveriam estar pensando a mesma coisa que eu, todos estavam vendo seus cacetes desenhados em marte passando no jornal nacional.

O Filipinho, com quem eu dividia minha cerveja, disse que mesmo com o homem em marte ele ainda não sabia ler. Foi quando pensei uma das coisas mais bonitas da minha vida: ir pra marte não é um progresso, mas uma atitude triste pra caramba. Parece que a gente está fugindo pro deserto - sempre penso essas coisas e nunca consigo dizer, alias, nem sei de onde tirei a palavra 'progresso'.

- Pra quê ir pra marte, né? - Foi só o que falei pro Filipinho

- Talvez um dia todo mundo precise fugir pra lá.

- Prefiro morrer a fugir de mim mesmo. - Falei olhando para a marca redonda molhada que o copo da cerveja deixava na mesa.

- Não entendi. Só sei que meu jubréolo é maior que aquele do desenho que o robozinho fez lá - Ele disse e rimos. Eu ria mais ainda porque ele não tinha o dente da frente.


quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Injetável.


— Jean-Paul Sartre

São as correntes das veias de tudo que perpassam todos os caminhos, todos os cantos, rincões e sonhos. É a realidade por si só que se faz sonho e o sonho em si que se transforma em realidade, os dois com suas formas diferentes de serem ao mesmo tempo tudo e nada, sublimes e pífios, formadores da gente.

É a linha vertical inexistente que divide nosso corpo em duas partes iguais a grande responsável pelo fluxo da “carroça de tudo na estrada de nada”.  A subtração do outro consome o um que restou, ou seja, sem ser corpo não se é alma, não se é sem morrer, tampouco se é deus sem ser um pouco cachorro, e vice versa – bendito seja o inglês na sua conjectura no espelho de god e dog.

Não há religião e ateu que não combinem, pois todo ser humano é o tudo e o nada, inconsoláveis condenados a um universo de consolação, e a linha que divide o tudo absoluto sempre em dois - subtraindo-se todas as suas variações – é fluxo, onde mora deus sem existir e o homem sem saber.

É nesse espaço abstrato e real que os demônios subterrâneos da metáfora inspiram o comportamento violento do cotidiano, e os deuses da iluminação os seus correspondentes homens bons, mas sempre uns relacionados aos outros, um fluxo contínuo de vida em doses materiais e abstratas. Assim toda poesia é injetável e toda droga é eterna, uma vez que deuses e cães estão relacionados, e o que nos resta da experiência é a poesia, a poesia é uma grande injeção de tudo e tudo é um pico certeiro nas veias, as quais convergem todas para o coração que se divide em duas partes iguais, como os lados macho e fêmea em que se divide todo o universo.  A parte isso, o que sobra é um amontoado crescente de coisas e não coisas onde se trepa para alcançar: outro pico.

Toda poesia é injetável e o que não é isso, são meios para isso, como o “rabo pra aquém do lagarto remexidamente”

A picada d’agulha no couro, na veia, é o estralo sonhador epifanico que resulta no fluxo sanguíneo e imaterial onde a escuridão e a luz fazem as pazes.

O suposto equilíbrio de Yin e Yang de que goza o homem que injeta, é o mesmo que desfruta o poeta obcecado ao conseguir o que quer.

Fazer poesia é injetar, buscar sem saber o que, e isso é tudo. O bem, a vida, o fluxo.
Literatura é cultura e faz escolas, já a droga dita o ritmo do homem comum, e um lugar não é senão feito de homens, e a escola não é senão uma coisa humana culturalizadora por meio de injeções de poesia sobre homens de vício.

O perigo de se fazer poesia é sempre o mesmo de injetar-se: ter que responder constantemente a pergunta “para quê?”

Toda poesia é injetável porque não se respondem perguntas quando existir é o que te resta, afinal quem consola é aquele que não existe – deus? Um homem que não fuma? – e o pico da existência é poesia.

Isto não é uma poesia.

O surrealismo da alucinação é a grande pergunta do poeta: se eu imagino, por que não existe?


Não existindo um limite certo entre a loucura e a sanidade, eu me permito dizer que poesia é droga real, formada de imagens, das quais todo homem é o mais ingênuo refém. Portanto o mundo é imaginação, jogo de imagens, já que este se faz de homens.  

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

"A MORTE DO PAI"

"Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. 
E então para. Cedo ou tarde, mais dia, menos dia, cessa aquele movimento repetitivo e involuntário, e o sangue começa a escorrer para o ponto mais inferior do corpo, onde se acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma área escura e flácida numa pele cada vez mais pálida, tudo isso enquanto a temperatura cai, as juntas enrijecem e as entranhas se esvaem. 
Essas transformações das primeiras horas se dão lentamente e com tal constância que há um quê de ritualístico nelas, como se a vida capitulasse diante de regras determinadas, um tipo de gentlemen’s agreement que os representantes da morte respeitam enquanto aguardam a vida se retirar de cena para então invadirem o novo território. Por outro lado, é um processo inexorável. Bactérias, um exército delas, começam a se alastrar pelo interior do corpo sem que nada possa detê-las. Houvessem tentado apenas algumas horas antes, e teriam enfrentado uma resistência cerrada, mas agora tudo em volta está calmo, e elas avançam pelas profundezas escuras e úmidas. Chegam aos canais de Havers, às glândulas de Lieberkühn, às ilhotas de Langerhans. Chegam à cápsula de Bowman nos rins, à coluna de Clarke na medula, à substância escura no mesencéfalo. E chegam ao coração. Ele continua intacto, mas se recusa a pulsar, atividade para a qual toda a sua estrutura foi construída. É um cenário desolador e estranho, como uma fábrica que trabalhadores tivessem sido obrigados a evacuar às pressas, os veículos parados a projetar a luz amarela dos faróis na escuridão da floresta, os galpões abandonados, os vagões carregados sobre os trilhos, um atrás do outro, estacionados na encosta da montanha.
No exato instante em que a vida abandona o corpo, ele passa para os domínios da morte. As lâmpadas, as malas, os tapetes, as maçanetas, as janelas. A terra, os campos, os rios, as montanhas, as nuvens, o céu. Nada disso nos é estranho. Estamos permanentemente rodeados por objetos e fenômenos do mundo dos 
mortos. Ainda assim, poucas coisas nos causam mais desconforto do que ver alguém preso a essa condição, ao menos se julgarmos pelos esforços que empreendemos para manter os cadáveres longe dos nossos olhos. Nos grandes hospitais eles não são apenas escondidos em ambientes isolados, os corredores que levam até eles são ermos, com elevadores e acessos privativos, e, mesmo que acidentalmente topemos com eles, serão apenas corpos empurrados sobre macas, sempre cobertos por lençóis. Quando deixam o hospital, fazem-no por uma saída própria e são transportados em carros com vidros escurecidos, nas igrejas são velados em salões sem janelas, durante o funeral estão em caixões lacrados, até afundarem numa cova ou serem consumidos no calor de um forno. Difícil enxergar um objetivo prático em tudo isso. Os cadáveres poderiam muito bem, por exemplo, ser conduzidos descobertos pelos corredores dos hospitais e transportados em carros comuns sem representar risco a quem quer que fosse. O homem idoso que morre numa sessão de cinema poderia, da mesma forma, permanecer no seu assento até o filme terminar, ou durante a sessão seguinte. O professor que sofre um ataque súbito e tomba no pátio da escola não tem necessariamente que ser retirado dali no mesmo instante, não faz mal nenhum que o corpo continue no chão até que o zelador tenha tempo de cuidar dele, ainda que mais para o fim da tarde, talvez mesmo à noite. Se um pássaro decidir pousar sobre ele para bicá-lo, que diferença fará? Porventura o destino que o aguarda na cova será melhor somente porque não o presenciaremos? Contanto que o corpo não esteja bloqueando uma rua, não é preciso pressa, pois ele não vai morrer outra vez. Nesse caso, os dias de frio extremo no inverno são especialmente propícios. Mendigos que morrem congelados em bancos de praça ou debaixo de marquises, suicidas que saltam de prédios altos ou de pontes, senhoras idosas que despencam de escadarias, vítimas presas nas ferragens de veículos, o garoto embriagado que cai na água depois de uma noitada na cidade, a garotinha que vai parar debaixo do pneu de um ônibus, por que a pressa em ocultá-los? Decoro? O que seria mais decoroso que permitir ao pai e à mãe daquela garota encontrá-la uma ou duas horas mais tarde, deitada na neve ao lado do local do acidente, a cabeça esmagada tão visível quanto o restante do corpo, o cabelo empapado de sangue e o casaco imaculado? A céu aberto, sem segredos, do jeito que estava. Mas mesmo uma hora na neve é impensável. Uma cidade que não mantenha seus mortos longe dos olhos, que os deixe jazer nas ruas e calçadas, parques e estacionamentos, não é uma cidade, e sim um inferno. Não importa que esse inferno reflita de modo mais realista e profundo nossa conduta. Sabemos que ela é assim, mas nos recusamos a encará-la. Eis o ato coletivo de repressão simbolizado no ocultamento dos nossos mortos."

karl ove knausgård
A morte do pai - Minha luta 1